terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Cartas, de Caio Fernando Abreu
Porto, 22 de dezembro de 1979
Zézim,
Cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tua carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês, não paro de pensar em você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica quieto e ouve, ou lê, você deve estar cheio de vibrações adeliopradianas e, portanto, todo atento aos pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a decisão pseudo-inteligente.
Seguinte, das poucas linhas da tua carta, 12 frases terminam com ponto de interrogação. São, portanto, perguntas. Respondo a algumas. A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace ai anda”.
Mais: já pensei, sim, se Deus pifar. E pifará, pifará porque você diz ”Deus é minha última esperança". Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança, a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso.
Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Allan Watts, e D. T. Suzuki, e isso freqüentem ente parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranqüilidade.
Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tUdo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.
Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.
É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na CultUra, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.
Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente.
E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.
Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/ e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido.
Caio
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Caramba!
ResponderExcluirEu passaria 3 dias e 3 noites acordado se tivesse recebido uma carta assim.
Por coincidência acabei de ler biografia do Caio F. e estou lendo aquele livrão que saiu recentemente, meio biográfico também, da Paula Dipp com base nas cartas dele.
Esse livro só com cartas ainda não li, estou lendo os contos ainda.
bjos
Veleiro
adoro Caio, e ainda mais suas cartas.
ResponderExcluirGostei muito do blog, já estou seguindo.
Um abraço :)
Eu tenho vomitado tanto ultimamente e ainda há tanto para ser vomitado. Estou numa fase onde nenhum outro amor é capaz de me preencher mais do que o amor pela escrita. E escrever é mesmo ulcerar, irreversivelmente, o próprio estômago. Não há solidão mais confortante, nem dor mais viciante. Não há bem maior do que o de construir-se, ainda que escrever seja desmoronar-se.
ResponderExcluirObrigado a você, Evandro, por publicar essa carta do Caio. Encontrar-se nas palavras dele é sempre gratificante.
Abraço.
Olá Feliz Ano novo =]
ResponderExcluirvc passou no meu blog faz um tempinho e como eu estava meio sumida não pude vir aqui antes.
Gostei basttante do seu blog tbm e ja estou seguindo.
Grande beijo,
valvulaadeescape.blogspot.com
Puta merda, que texto. A maneira com a qual ele define o ato de escrever é fantástica. Muito foda.
ResponderExcluirBela escrita, bela carta...é sempre bom recordar o passado....
ResponderExcluirForte abraço!
"Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente."
ResponderExcluirMESTRE!
Feliz ano novo atrasado, Evandro!
Meu querido, parabens por mais um belo texto viu! Espero você tenha tido um final de ano de paz e muita tranquilidade. Continue postando pra gente aqui, as maravilhas e delicias de textos, como esse. Falar do seu blog, é como dizem, chover no molhado!
ResponderExcluirMenino.
ResponderExcluirPegou de jeito esta carta.
Sem comentarios..
Obrigada por coloca-la qui.
Beijo
Faz análise, Zézim.
ResponderExcluirSou apaixonada por este livro.
Um livro sempre recomendado...
ResponderExcluirCada vez mais "aparece" pra q eu possa usufrui-lo
Uma lição de vida. Amei, amei!
ResponderExcluirFrases marcantes, mas a melhor foi: 'Ler é alimento de quem escreve'. Perfeita!
Sou suspeita para comentar mto sobre, pq sou uma verdadeira apaixonada pela leitura e pela mudança que ela causa em nós.
Um forte abraço, meu amigo.
Te espero lá no blog ;)
www.nicellealmeida.blogspot.com
Evandro, fique à vontade para postar o que quiser em seu Facebook. fico feliz que gosta das minhas palavras.. Beijos.
ResponderExcluirgosto do Caio, ou melhor aprendi a gostar dele porque ele adorava a Clarice,
ResponderExcluirabraço
Zézim, ninguém te ensinará os caminhos...
ResponderExcluirnão esqueço dessa parte.
Adoro Caio Fernando e Clarice Lispector. O mundo deles parece o meu.
ResponderExcluirÓtima carta!
Se quiser, dê uma passadinha em meu blog, eu agradeço. Abraços.
Meu Deus! que escritor fantastico! caraca merece aplausos de pé!
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