quinta-feira, 18 de novembro de 2010
As Horas - Michael Cunningham
Talvez poucas pessoas saibam que o filme "As Horas" dirigido por Stephen Daldry em 2002 ( diretor de Billy Elliot em 2000 e de O Leitor em 2009) é uma adaptação do romance homônimo do escritor norte-americano Michael Cunningham, que no livro, presta tributo a Virginia Woolf (1882-1941).
O filme rendeu oito indicações ao Oscar em 2003: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator Coadjuvante (Ed Harris), Melhor Atriz Coadjuvante (Julianne Moore), Melhor Figurino, Melhor Edição, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Trilha Sonora, e venceu na categoria de Melhor Atriz (Nicole Kidman).
No Festival de Berlim 2003 venceu o Urso de Prata (Meryl Steep, Nicole Kidman e Julianne Moore),
recebeu um prêmio especial do júri e foi indicado ao Urso de Ouro.
Mas eu gostaria de falar mais sobre o livro de Michael Cunningham, do que sobre o filme de Stephen Daldry.
Virginia Woolf para mim é a mais radical experimentalista da ficção inglesa e foi magistralmente homenageada pelo escritor em um jogo de referências à obra-prima "Mrs. Dalloway", à luz dos problemas dos anos 90.
A homenagem do autor está tanto no estilo intimista, próprio de Woolf, quanto ao colocá-la como uma das protagonistas do livro, que narra um dia na vida de três mulheres de diferentes gerações.
Virginia Woolf vive no subúrbio de Londres em 1923 preparando os manuscritos de seu romance "Mrs. Dalloway" --ainda nessa fase intitulado "The Hours" (As Horas); Laura Brown é uma deprimida dona-de-casa em Los Angeles, lendo "Mrs. Dalloway" em 1959, e Clarissa Vaughan, uma editora de livros que vive nos dias de hoje na West 10th Street, em Greenwich Village.
Mrs. Woolf, Mrs. Laura e Mrs. Clarissa são, respectivamente, as três faces de "Mrs. Dalloway": a que escreve, a que lê e a que vive. O livro começa com um prólogo no qual se narra o suicídio de Virginia Woolf, quando, aos 59 anos, se afogou no rio Ouse, Sussex, no sudeste da Inglaterra, onde então morava.
Virginia escreve duas cartas de despedida. Uma para sua irmã, Vanessa Bell. A outra para seu marido, Leonard Woolf. Põe duas grandes pedras no bolso e mergulha nas águas caudalosas.
O começo abrupto, frio e estranho só ganha razão de ser pela coerência interna que avança gradativamente.
A história toma pulso a partir do quarto episódio, quando estão bem delineadas as vidas paralelas do romance.
A história de Clarissa é a peça central. Seu apelido, Mrs. Dalloway, foi dado por seu amigo e ex-amante Richard, um atormentado poeta homossexual, soropositivo em fase terminal. Como no romance original de Woolf, Clarissa sai para comprar flores, perambulando pelas ruas da cidade, reflete sobre sua vida, reencontra conhecidos e esforça-se para que a festa em homenagem ao prêmio literário recebido por Richard seja perfeita.
Ao contrário da mera sugestão de um amor de infância no romance woolfiano, Clarissa e Sally vivem juntas e felizes há 18 anos. A jovem Julia, filha de Clarissa, cujo pai é "nada mais do que uma proveta numerada", é preocupação para a mãe por se relacionar com uma amiga feminista.
O livro não traz de volta as circunstâncias políticas de "'Mrs. Dalloway", ecos da Primeira Guerra Mundial, através das alucinações de um ex-combatente. Porém, a percepção visionária, a um passo da loucura do poeta Richard, e a aproximação das angústias vividas por uma família tradicional --no caso de Laura-- e de uma família pós-moderna --Clarissa e Sally-- reintroduzem a história no livro de Cunningham.
Não a história dos grandes eventos, mas a dos pequenos fatos que reverberam e se eternizam no miúdo --flores, entre a renovação e a decrepitude, olhares, beijos furtivos, festas e frivolidades, decepções e descobertas. Há uma virtual imobilização com a concentração no detalhe prosaico, no mergulho vertiginoso no inconsciente. Cada cena é decisiva. Casais homossexuais, jovens fúteis, quarentões, ex-militantes que aderiram às glórias do consumo, donas-de-casa sufocadas, liberdade ameaçada pela iminência da Aids, gerações que poderiam ter sido e que não foram. Esse painel cruel dos anos 90 parece um prato cheio para certa crítica engajada que valoriza questões de raça, gênero e classe nos EUA.
Mas o valor do livro não está na sua boa intenção. Dela o autor se valeu nos romances anteriores, ao retratar os desajustados --com certa proeza em "Uma Casa no Fim do Mundo" (1990), de maneira um tanto desigual em "Laços de Sangue" (1995) e agora com maturidade suficiente para agradar a conteudistas e a formalistas.
A insatisfação une as personagens. Virgínia, cansada e fraca, aborrecida com a chegada antecipada de sua irmã e a impossibilidade de continuar escrevendo. Laura e sua sufocante vida caseira, sua obsessão não só por atingir a perfeição nas tarefas domésticas --na preparação da festa de aniversário de seu marido-- como também pela leitura da obra de Woolf, que para ela é a catarse --ela chega ao ponto de deixar o filho com uma babá e vai a um hotel simplesmente para ler. E a própria Clarissa e suas dualidades: vida e arte, o testemunho do suicídio do amigo e a revisão de escolhas. Mas, diferentemente de "Mrs. Dalloway", para surpresa do leitor, as três histórias convergem e deixam uma nota de esperança.
Mais do que frêmito, a obra de Cunningham é um mergulho, seja em pesquisa, seja em estilo, que faz manter viva Virginia Woolf. Não é necessário ser um devoto da escritora inglesa para apreciar o pequeno livro de Cunningham. Mas, como escreveu o próprio autor, as conexões entre os dois livros se tornam tão mais "ricas, penetrantes e originais que não ler 'Mrs. Dalloway' depois de ter lido 'As Horas' é como deixar um concerto justamente no momento em que ele está no seu auge".
"As Horas" é um livro que tem vida própria, mas que estimula a (re)ler Virginia Woolf e a refletir sobre a porção Mrs. Dalloway que existe em cada um de nós.
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Não li o livro, mas assisti o filme e adorei. É um filme que merece ser visto mais de uma vez. As três protagonistas estão ótimas. Aliás tudo no filme é de primeira, vale a pena!
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