sábado, 30 de outubro de 2010
Hiroshima Mon Amour
Em Hiroshima Mon Amour, de Alain Resnais, desde o primeiro diálogo do filme entre os amantes, o espectador lança-se nessa nova modalidade lírica. É um diálogo de conflito, de oposição e de luta amorosa, este fala sobre a guerra, bem antes de falar de amor: “- Ele - Tu não viste nada em Hiroshima. Nada. - Ela - Vi tudo. Tudo. O hospital por exemplo, vi-o . Tenho certeza. O hospital existe em Hiroshima. Como poderia eu ter deixado de o ver? - Ele - Tu não viste nenhum hospital em Hiroshima.”
Por esses diálogos iniciais introduz-se no cerne do tema problema: as interrelações entre o amor e a guerra. O primeiro passo, a abertura do lirismo, consiste em situar-se em face do conflito sobre uma realidade social e política - Hiroshima. Este conflito que se traduz pela dialética entre as afirmações da mulher e as negações do homem. E esse lirismo combativo vai exigir uma atitude crítica do espectador.
A tragicidade que se encarna em “Hiroshima Mon Amour” se manifesta através de um conflito permanente e sempre radical. E este conflito, que é vivido e conscientizado, fruto de uma reflexão emotiva, se revela como luta entre as possibilidades humanas e uma realidade intransponível. Considerando a personagem de E.Riva face a face consigo mesma, temos a luta entre as possibilidades humanas - suas forças internas, suas paixões, sua lucidez - e uma realidade inelutável, insuperável. Entre as possibilidades humanas, estão: o desejo de permanecer, de guardar, de sempre lembrar, de manter uma memória acesa, de garantir o reconhecimento de si mesmo, de amar fortemente. Como realidade intransponível, correspondendo modernamente ao “destino” nas tragédias gregas, se vive e se conscientiza o tempo com sua dimensão de fuga, de esquecimento, de infidelidade ao amor que se desejava reter, mesmo à custa da loucura.
O trágico vai consistir, sobretudo e essencialmente, no contraponto entre a veemência do “discurso” e o drama dos personagens - nessas cenas, tornado mais intensamente pessoal. É a partir desta sequência que o personagem masculino experimenta o primeiro desejo de permanência: - “Não gosto de pensar na tua partida. Amanhã. Parece-me que estou apaixonado por ti”. Então, os elementos da tragédia se manifestam ou se acham entre a objetividade cruel da destruição de Hiroshima e a possibilidade (ou a impossibilidade) humana de findar o amor - ou de perdê-lo.
Entretanto, quem mais e melhor encarna a tragicidade da condição humana é a personagem de E. Riva. Sua mobilidade fisionômica ou a “metamorfose de seu rosto” servem para transmitir - num dos raros momentos da história do cinema - as verdadeiras situações-limite da existência humana: a plenitude da adolescência (Ele: “Em Nevers foste tão jovem... tão jovem que ainda não pertencias a ninguém”); a descoberta do primeiro amor; o sofrimento diante da morte do soldado alemão(Ela: “Raspar a cabeça a uma rapariga porque ela amou um inimigo declarado do seu país é um absoluto tanto do horror como da estupidez”); a experiência de loucura (Ela: “É como a inteligência, a loucura, tu sabes, não se pode explicá-la”); a consciência de como é fatal o esquecimento; a tentativa de auto superação (o amor-síntese com o arquiteto japonês); a inconclusão da existência humana (o filme termina com uma esperança reticente). Para Margueritte Duras não tem sentido procurar saber se “ela ficou ou partiu”. O final de Hiroshima Mon Amour é imprevisto, intencionalmente inacabado, como a própria existência humana.
Escolheu-se o absoluto dessa “desgraça pessoal” porque ela nos atinge na tragicidade de nossa condição humana. É esta significação de tragédia que une “o primeiro amor” em Nevers ao amor da maturidade em Hiroshima. Deste amor maduro, com todo o seu impacto de sinceridade e amargura, de acaso e de “necessariedade”, representado pelo encontro-reconhecimento-confissão-fracasso de todo o filme: Ele - “Dentro de alguns anos, quando te tiver esquecido e histórias como essa acontecerem ainda pela força do hábito, lembrar-me-ei de ti como a essência do esquecimento. Sei que hei de pensar assim”. Nunca um personagem conseguiu ser tão lúcido diante da amargura; tão cruel, embora sem ressentimento; tão reflexivo e ao mesmo tempo tão emotivo. Esta “fala” também é síntese de todo o filme, desde que nela está condensada todo o sentido da tragédia contemporânea.
Em conjunto, o filme exprime uma das características essenciais da obra trágica: a catarse. A longa cena do bar, onde a memória retrospectiva vai aos poucos sendo absorvida pela atualidade dos personagens, atinge seu clímax com a identificação do japonês com a figura do primeiro amor. Esse efeito “catártico” - de libertação, de “purificação” - prossegue com a maior das intensidades na última sequência. São “monólogos”, quer diante do espelho do quarto, quer sobretudo através das ruas de Hiroshima em fusão com as de Nevers. Solidão e monólogo interior como formas de “situação-limite”. Monólogo sobre o tempo e o esquecimento: - “O tempo passará. O tempo apenas. E mais tempo há de vir. O tempo virá. E então não saberemos que nome dar ao que nos unirá. O nome apagar-se-á a pouco e pouco da nossa memória. Depois desaparecerá por completo”.
O trágico de não ter morrido em Nevers; o trágico de ter podido contar a história do primeiro amor; o trágico de já pressentir o esquecimento desse amor novo e maduro; o trágico de, enfim, depois de um penoso anonimato, reconhecerem-se: Ela - “Hiroshima é teu nome. Ele - “É meu nome. Sim. Teu nome é Nevers”
O trágico de, após tão grande sofrimento, ninguém saber - porque ninguém soube nunca - se haverá permanência ou esquecimento. O trágico de, até hoje, cada vez menos sabermos quando novas cinzas destruirão outra Hiroshima.
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