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quinta-feira, 22 de março de 2012

Senhora das Tempestades





Senhora das tempestades e dos mistérios originais
Quando tu chegas, a terra treme do lado esquerdo
Trazes a assombração
As conjunções fatais
E as vozes negras da noite
Senhora do meu espanto e do meu medo
Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma
Há uma lua do avesso quando chegas
Há um poema escrito em página nenhuma
Quando caminhas sobre as águas
Senhora dos sete mares
Conjugação de fogo e luz
E no entanto eclipse
Trazes a linha magnética da minha vida
Senhora da minha morte
Quando tu chegas, começa a música
Senhora dos cabelos de alga
Onde se escondem as divindades
Trazes o mar, a chuva, as procelas
Batem as sílabas da noite
Batem os sons, os signos, os sinais
E és tu a voz que dita
Trazes a festa e a despedida
Senhora dos instantes com tua rosa dos ventos
E teu cruzeiro do sul
Senhora dos navegantes
Com teu astrolábio e tua errância
Tudo em ti é partida
Tudo em ti é distância
Tudo em ti é retorno
Senhora do vento
Com teu cavalo cor de acaso
Teu chicote, tua ternura
Sobre a tristeza e a agonia
Galopas no meu sangue com teu cateter chamado
Pégaso
Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
Senhoraa das tempestades e dos líquidos caminhos
Quando tu chegas, dançam as divindades
E tudo é uma alquimia
Tudo em ti é milagre
Senhora da energia 


terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Palestra de José Miguel Wisnik – Clarice Lispector






O vídeo abaixo traz, na íntegra, a conferência de José Miguel Wisnik sobre Clarice Lispector realizada no dia 10 de dezembro de 2011, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro. Nesse dia, comemorou-se a data de nascimento da escritora (1920-1977) em uma série de eventos intitulada Hora de Clarice. Ao lado de outras várias instituições, o IMS também prestou sua homenagem na ocasião. Wisnik é ensaísta, professor de literatura brasileira na USP e compositor e falou no IMS sobre importantes obras da escritora, como Laços de família, A legião estrangeira e A hora da estrela.

Veja o vídeo no link: http://blogdoims.uol.com.br/ims/palestra-de-jose-miguel-wisnik-clarice-lispector/

sábado, 7 de janeiro de 2012

VIRGINIA WOOLF: A MEDIDA DA VIDA



Guiado pelos escritos deixados por Virginia Woolf (principalmente seus diários e cartas), Herbert Marder compôs uma alentada biografia da autora, em dezoito capítulos. O livro concentra-se nos últimos dez anos de vida de Virginia Woolf, até seu suicídio, em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de fundamentada numa ampla pesquisa histórica e documental, a narrativa de Herbert Marder é clara e fluente.

A obra destaca a participação da escritora nos acontecimentos políticos da época, sua revolta contra a discriminação das mulheres e a interação com os amigos que formavam o chamado Círculo de Bloomsbury (escritores e intelectuais que se reuniam na casa de Virginia Woolf no bairro londrino de Bloomsbury, como o poeta T. S. Eliot, o crítico de arte Roger Fry e o economista Maynard Keynes).

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

É isto um homem?






Primo Levi, 1919-1987, judeu italiano foi um dos poucos sobreviventes de Auschwitz, o campo de concentração onde milhões de prisioneiros, judeus como ele, foram assassinados pelos nazistas. Sobreviveu para regressar a Turim, sua cidade-natal, e escrever um dos mais extraordinários e comoventes testemunhos dos campos de extermínio nazista.
Dedicou o resto da sua vida à procura incessante da resposta para a pergunta essencial de Auschwitz: “O que é um homem?"

Em ‘Isto é um homem?’, Levi descreve sua vida e a de todos os judeus que, após chegarem vivos até Auschwitz e sobreviver à primeira seleção, ficam trabalhando – e morrendo – nos campos de trabalho de Auschwitz-III-Monowitz e Birkenau.
O campo de Auschwitz-III-Monowitz, para onde ele foi despachado, também chamado de Buna-Monovitze ou de Buna, era um gigantesco complexo químico construído pela empresa IG-Farben. Todos os 15 mil prisioneiros do campo trabalhavam em regime de escravidão na instalação de uma fábrica de borracha sintética.

Levi viveu em Buna durante um ano, período em que morreram quatro quintos de seus companheiros, substituídos imediatamente por outros novos prisioneiros também destinados a morrer rapidamente. É de importância primordial para Primo Levi que o leitor entenda o processo usado pelos algozes alemães para “aniquilar um homem, transformá-lo em nada, em um número marcado na carne”.

Fazemos nossas as suas palavras: “Então, pela primeira vez, percebemos que à nossa língua faltam palavras para expressar esta ofensa: a demolição de um homem. Num instante, com intuição quase profética, a realidade nos é revelada. Chegamos ao fundo... Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos não nos ouvirão e, se nos ouvirem, não entenderão... roubaram também nossos nomes e se quisermos manter-nos teremos que encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa do que éramos”.

O primeiro alerta sobre como conseguir manter a humanidade dentro do Lager vem de um dos prisioneiros, um ex-sargento do exército austro-húngaro, que avisa Levi: “Campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais. Mas não devemos nos transformar em animais; até num lugar como este pode-se sobreviver para relatar a verdade, dar nosso depoi-mento. Destinados a uma morte quase certa, resta-nos uma única opção, que devemos defender a qualquer custo, justamente porque é a última: a de não permitir que nos façam virar um ‘nada’”. 

Levi compara Auschwitz ao inferno retratado por Dante em sua obra “A Divina Comédia”. Em apenas duas linhas consegue descrever a vida nesse inferno: “Todos os dias, segundo o ritmo pré-estabelecido, Ausrücken ed Einrücken, sair e regressar; trabalhar, dormir e comer; adoecer, restabelecer-se ou morrer”. 

Relata os detalhes do “cotidiano”: a impiedosa luta pela sobrevivência, as “seleções” feitas pelos nazistas dos prisioneiros destinados à exterminação, a fome insaciável, o trabalho desumano, a violência dos guardas, o frio e a imundície, as doenças físicas e mentais, as humilhações, a apatia que os derrotava... Acima de tudo, a necessidade de se adaptar ao inferno, onde tudo é proibido pela única razão de ser proibido. “A nossa sabedoria era não procurar entender, não premeditar o futuro, não nos atormentarmos acerca de como e de quando tudo acabaria, não fazer perguntas aos outros nem a nós mesmos”. 

Primo Levi não se limita a deixar que os fatos falem por si sós. Ele os comenta. Enquanto escreve, tenta ele mesmo compreender a “lógica” por trás da barbárie nazista; e como a vida no Lager ia transformando, ou melhor, “deformando”, física e mentalmente, aqueles que conseguiam sobreviver. Estuda, com passiva aflição, o que resta de humano em quem é submetido à prova terrível de perder tudo que o identifica como tal. Em suas páginas lembra tanto dos que não agüentaram, sucumbindo perante o mal absoluto, como dos que sobreviveram, conseguindo manter sua humanidade.

Em janeiro de 1945, pressionados pelo avanço do exército russo, os alemães abandonam o campo levando consigo, a pé, no inverno polonês, os prisioneiros sadios. A maioria morreu durante a chamada “Marcha da Morte”. Mais uma vez a sorte fica ao lado de Primo Levi que, doente, com escarlatina, é abandonado na enfermaria do Lager com outros 800 prisioneiros doentes, mais de 700 dos quais acabam morrendo. Levi é um dos poucos que sobreviveu ao campo de extermínio do qual não estava previsto que alguém sobrevivesse.


segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O Último dia do mundo - Fúria, ruína e razão no grande terremoto de Lisboa de 1755





O primeiro abalo atingiu Lisboa na manhã do dia 1º de novembro, de 1755 - Dia de Todos os Santos. Minutos depois, outro ainda mais forte arrasou a cidade, seguido por um terceiro. Lisboa, uma das capitais mais imponentes da Europa, foi destruída em menos de 15 minutos. Então um tsunami arrastou milhares de pessoas e um vento implacável espalhou os focos de incêndio provocados pelos tremores.
O jornalista Nicholas Shrady revela, em O Último Dia do Mundo, que a reação ao desastre natural, mais do que a tragédia em si, é o que ainda hoje provoca grande fascínio. O terremoto em Portugal, na capital mais católica do continente, abalou as certezas intelectuais e religiosas que na época dominavam a Europa do Iluminismo.
Até 1755, as aflições que a natureza impunha sobre a humanidade eram consideradas obra de um Deus furioso - o homem estava pagando por seus pecados e fraquezas. Após a catástrofe, o lugar de Deus nas relações humanas começou a ser questionado. Voltaire, Pope, Kant e Rousseau, entre outras figuras eminentes, fizeram do acontecimento um veículo para expressar suas ideias iluministas. O grande terremoto e a subsequente reconstrução de Lisboa também deram origem a reformas sociais e econômicas memoráveis, ao planejamento urbano moderno e ao nascimento da sismologia.
"Perante o monumental alcance da destruição, o rei, que tinha 40 anos de idade e era mais propenso aos tons estrondosos da ópera e à alegria da caça do que ao trabalho obstinado de governar seu reino, estava perplexo. Mensageiros chegaram durante toda a manhã, trazendo relatos cada vez mais explícitos das cenas infernais de terror e ruína, do incalculável número de mortos e da chegada do Apocalipse. Impotente, ele fez exatamente o que nenhum monarca jamais deveria fazer: encolheu-se de medo", escreve o autor.
No entanto, o Estado português, com a ajuda do Santo Ofício da Inquisição, se esforçava para garantir que as mentes portuguesas não fossem influenciadas por ideais que pudessem abalar sua fé. Somente um pequeno grupo parecia prestar atenção nas inovações que emergiam em países como França e Inglaterra. Entre esses esclarecidos, estava José de Carvalho e Melo, a quem o rei confiou a reconstrução de Lisboa:
"Levado à presença do rei, Carvalho ficou chocado com a cena de confusão e piedosas invocações, e por ver o monarca num estado tão evidente de angústia. O diálogo que se seguiu teve enorme significado e definiu a resposta para a crise com a precisão de um aforismo.
- O que deve ser feito para enfrentar esta imposição da justiça divina? - perguntou o rei. - Enterrar os mortos e alimentar os vivos - respondeu Carvalho.
A declaração era exatamente o que o rei prostrado desejava ouvir."
Em O Último Dia do Mundo, o autor revela como, inspirado nos grandes filósofos iluministas da época, Carvalho fez com que a razão triunfasse sobre o obscurantismo religioso. Assim, enquanto muitos rezavam, ele rapidamente enviou tropas para apagar o fogo, buscar sobreviventes em meio às ruínas e controlar os saqueadores. Lisboa seria reconstruída, e ressurgiria como uma cidade moderna, de ruas largas, com sistemas de esgoto e escoamento adequado.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Umberto Eco - Cemitério de Pagra



Personagens históricos em uma delirante trama fantástica. 
Trinta anos após O nome da rosa, Umberto Eco nos envolve, mais uma vez, em uma narrativa vertiginosa, na qual se desenrola uma história de complôs, enganos, falsificações e assassinatos, em que encontramos o jovem médico Sigmund Freud (que prescreve terapias à base de hipnose e cocaína), o escritor Ippolito Nievo, judeus que querem dominar o mundo, uma satanista, missas negras, os documentos falsos do caso Dreyfus, jesuítas que conspiram contra maçons, Garibaldi e a formação dos Protocolos dos Sábios de Sião. 
Curiosamente, a única figura de fato inventada nesse romance é o protagonista Simone Simonini, embora, como diz o autor, basta falar de algo para esse algo passar a existir...

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Por Acaso Gullar...


Nascido em São Luis do Maranhão, em 1930, Ferreira Gullar, procurou apontar em sua obra a problemática da vida política e social do homem brasileiro.
De uma forma precisa e profundamente poética traçou rumos e participou ativamente das mudanças políticas e sociais brasileiras, o que lhe levou à prisão juntamente com Paulo Francis, Caetano Veloso e Gilberto Gil em 1968 e posteriormente ao exílio em 1971 .
Poeta, crítico, teatrólogo e intelectual, Ferreira Gullar entra para a história da literatura como um dos maiores expoentes e influenciadores de toda uma geração de artistas dos mais diversos segmentos das artes brasileiras.
Nesse documentário Gullar fala um pouco sobre sua obra e pode-se ouvir alguns dos seus poemas na voz de Maria Bethânia.




segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Vergänglichkeit



SOBRE A TRANSITORIEDADE

Sigmund Freud


Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.

A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência, pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente. Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta, ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado. Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada. Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.

Mas essa exigência de imortalidade, por ser tão obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro. Não vi como discutir a transitoriedade de todas as coisas, nem pude insistir numa exceção em favor do que é belo e perfeito. Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Um flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.

Essas considerações me pareceram incontestáveis, mas observei que não causara impressão quer no poeta quer em meu amigo. Meu fracasso levou-me a inferir que algum fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza; e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.

O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele o considera evidente por si mesmo. Para os psicólogos, porém, o luto constitui um grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem ser rastreadas outras obscuridades. Possuímos, segundo parece, certa dose de capacidade para o amor — que denominamos de libido — que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos forem destruídos ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego. Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento da libido de seus objetos deve constituir um processo tão penoso, até agora não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.

Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.

Não pode surpreender-nos o fato de que nossa libido, assim privada de tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se tenham tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que agora perdemos, realmente deixaram de ter qualquer valor para nós por se revelarem tão perecíveis e tão sem resistência? Isso parece ser o caso de muitos de nós; só que, na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, de e parecem prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu. O luto, como sabemos, por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.



Este ensaio foi escrito em novembro de 1915, a convite da Berliner Goetherbund (Sociedade Goethe de Berlim) para um volume comemorativo lançado no ano seguinte sob o título de Das Land Goethes (O País de Goethe). O ensaio abrange um enunciado da teoria do luto contido em ‘Luto e Melancolia’ (1971e), que Freud escrevera alguns meses antes, mas que só foi publicado dois anos depois.


quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Sugestões para atravessar agosto

Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro — e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.

Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir. Dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons deixam a vontade impossível de morar neles; se maus, fica a suspeita de sinistros augúrios, premonições. Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos, de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzsche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem: qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos.

Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente, agosto. Angústia agostiana é coisa cultural,sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos ou precauções — úteis a todos. O mais difícil: evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile a fantasia, categoria originalidade… Esquecê-lo tão completamente quanto possível (santo zap!): FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.

Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu — sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antônio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún, ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à luz da lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.

Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se ou lamuriar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques — tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informação para que as desgraças sociais ou pessoais não dêem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire, a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas — coisas assim são eficientíssimas, pouco me importa ser acusado de alienação. E isso mesmo; evasão, escapismo assumidos, explícitos.

Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter demais no tema., Mudar de assunto digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco.
O Estado de S. Paulo, 6/8/99

Caio F. Abreu in Pequenas Epifanias.

domingo, 17 de julho de 2011

Desafio Literário

Respondendo ao desafio literário proposto por Alan Tykhé do blog Pensamentos e Fragmentos:



1 - Existe um livro que você leria e releria várias vezes?
Sim.  Crime e Castigo – Dostoievsk

2 - Existe um livro que você começou a ler, parou, recomeçou, tentou e tentou, mas nunca conseguiu ler até o final?
Sim, O Ser e o Nada, Jean Paul Sartre, mas não desisti.

3 - Se você escolhesse um livro para ler para o resto da sua vida, qual seria ele?
Livro do Desassossego, Fernando Pessoa.

4 - Que livro você gostaria de ter lido, mas que, por algum motivo, nunca leu?
A Divina Comédia, Dante Alighieri

5 - Qual livro que você leu cuja "cena final" você jamais conseguiu esquecer?
O Vermelho e o Negro, Sthendal. Tenho vontade de chorar de emoção só em lembrar.

6 - Você tinha o hábito de ler quando criança? Se lia, qual tipo de leitura?
Não, até que com 12 anos li A Metamorfose, de Kafka, e nunca mais parei.


7 - Qual o livro que você achou chato, mas ainda assim o leu até o final?
Germinal , de Émile Zola

8 - Indique alguns dos seus livros favoritos.
A cerimônia do adeus, Simone de Beauvoir
A condição humana, Hannah Arendt
A Metamorfose, Franz Kafka
A Montanha Mágica, Thomas Mann
A Náusea, Jean-Paul Sartre
A Paixão Segundo GH, Clarice Lispector
As Benevolentes, Jonathan Littell
As Palavras e as Coisas, Michel Foucault
Assim Falou Zaratustra,Friedrich Nietzsche
Crime e Castigo, Fiódor Dostoiévski
Crônica da Casa Assassinada, Lúcio Cardoso
Decamerão,Giovanni Boccaccio
Dom Casmurro, Machado de Assis
Fragmentos de Um Discurso Amoroso ,Roland Barthes
Grande Sertão: Veredas, Joao Guimaraes Rosa
Hamlet, Shakespeare
Lobo da Estepe, Herman Hesse
Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu
Mrs. Dalloway, Virginia Woolf
O Banquete, Platão
O Cânone Ocidental, Harold Bloom
O Evangelho Segundo Jesus Cristo, José Saramago
O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
O Vermelho e o Negro, Sthendal
Otelo, Shakespeare
Shakespeare - A Invenção do Humano, Harold Bloom
Verdade Tropical ,Caetano Veloso
É isto um Homem - Primo Levi

9 - Qual livro você está lendo no momento?
Clarice, de Benjamim Moser
A Solidão do Diabo, de Paulo Bentancur

Forte abraço ao querido Alan, obrigado pelo desafio.
Deixo o desafio para todos os blogueiros que amam livros. 

domingo, 27 de março de 2011

Só melhoro quando chove.




 Essa “dona doida” Adélia Prado, que apareceu nos anos 70 (com o extraordinário Bagagem) na poesia brasileira, dando um novo significafo-requinte à poesia do quotidiano.


Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso

com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.

Quando se pôde abrir as janelas,

as poças tremiam com os últimos pingos.

Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,

decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.

Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,

trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.

A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,

com sombrinha infantil e coxas à mostra.

Meus filhos me repudiaram envergonhados,

meu marido ficou triste até a morte,

eu fiquei doida no encalço.

Só melhoro quando chove.


sábado, 5 de março de 2011

Uma Deusa chamada Marlene



Fascinante!- era esta a palavra com a qual a alemã Marlene Dietrich era, e continua, a ser rotulada por muitos. Dançarina de cabaré, nem ela sonhava o furor que faria anos mais tarde.

Marie Magdelene Von Losch nasceu em Berlim, a 27 de Dezembro de 1901. O início da sua carreira foi duro até ascender ao patamar das estrelas. De início dançando em cabarés e teatros da cidade de Berlim, exibindo as suas belas pernas, Marlene Dietrich nunca teve qualquer pudor em exibir a sua homossexualidade. Era, por isso, uma mulher falada, distante dos padrões morais da Berlim daqueles tempos, ainda que os espaços noturnos para gays já proliferassem em abundância pela cidade.

Apreciava mulheres e homens, e isso era do conhecimento público. Marlene viria a casar-se com Rudolf Simmer, assistente de direção, embora a data certa seja um pouco discutível, sabendo-se que foi no início dos anos 20, possivelmente em 1924 Ainda assim, fala-se que Marlene nunca tenha deixado para trás a sua amante de longa data, Tamara, e que o seu anterior namorado, um padeiro de nome Willy Michel, a tenha marcado para sempre. Ainda assim, as biografias sobre a diva não falam deste homem. Depois de já ter sido mãe de uma menina, Maria Riva, o único rebento de Marlene conjuntamente com Rudolf, Marlene Dietrich foi descoberta por Josef Von Sternberg. Eram os finais dos loucos anos 20, tempo antes de Marlene ir para os Estados Unidos com o diretor e tornar-se uma estrela.

Foi com o ‘Anjo Azul’, em 1929, que o fenomeno Marlene Dietrich saltaria para o mundo. Fazendo o papel de um dançarina de cabaré, de nome Lola-Lola, este foi o filme que a lançaria para a rampa do sucesso e da sensualidade. ‘Da cabeça aos pés, eu sou feita para o amor’- esta foi a frase que marcou o filme ‘O Anjo Azul’, e que Marlene Dietrich interpretava. Hollywood abriu as portas para Marlene Dietrich, e a mítica ‘vamp’, como era conhecida, não mais parou na sua ascensão ao êxito.



Amante do homem que a lançou para o estrelato, Sternberg, Marlene Dietrich renunciou totalmente qualquer laço com os alemães por conta da Segunda Guerra Mundial. Dizia ela ser contra o nazismo, permanecendo assim no cinema americano e renunciando às artes cinematográficas alemãs. Chegou mesmo a ser encarada, por causa desta sua renúncia, uma traidora da pátria alemã. Sempre muito preocupada com a sua privacidade, Marlene Dietrich era uma mentirosa compulsiva. Muitas eram as situações em que dizia uma coisa, para tempos depois contradizer tamanha verdade. E, assim, são muitos os pontos de interrogação relativamente a várias situações da sua vida.

Fez também furor enquanto cantora, dando uma maior vida a esta sua faceta nos anos 50. Não que tivesse uma voz digna de um destaque notável, mas porque a rouquidão da mesma seduzia qualquer ouvido. Em meados da década de 70, por ocasião de um espectáculo em Sydney, Marlene teve um acidente que lhe valeu a fratura da bacia e perna. Nessa altura, foi viver em Paris com a sua empregada. Em cadeira de rodas, Marlene Dietrich não permitia que ninguém a visse. Essa imagem impotente, para uma das mulheres mais belas de sempre, era algo que a revoltava. Por isso, apenas a filha, netos, e o médico tinham permissão para a ver.

Afastada dos palcos e das telas do cinema, Marlene dedicou-se a escrever a sua própria biografia, ‘O ABC de Marlene Dietrich’, muito longe da realidade e dos seus próprios traços pessoais. Um ano após a sua morte foi lançado um livro da autoria da sua filha, que dá a conhecer Marlene Dietrich como uma mulher fria e violenta. A ‘devoradora de homens’, como assim ficou conhecida nos circuitos sociais e artísticos da época, foi uma mulher de muitos amores, tantos homens como mulheres. Aliás, o escritor Ernest Hemingway, apaixonado por Marlene durante muito tempo, escreveria mesmo que ‘ela pode derreter um homem com um levantar de sobrancelhas e destruir uma rival com o olhar’.

Segundo inúmeras biografias sobre Marlene Dietrich os seus envolvimentos amorosos foram diversos.Porém, na sua longa lista de relações, com homens e mulheres, estão também figuras públicas como foi o caso de Greta Garbo, Frank Sinatra ou John F. Kennedy. Marlene Dietrich foi uma mulher controversa, que mesmo depois de morta continua a ser motivo de notícia. O Anjo Azul faleceu a 5 de Maio de 1992, certa de que conquistou muitos corações.


domingo, 27 de fevereiro de 2011

Só Garotos, Patti Smith


“Tem gente que nasce rebelde. Lendo a história de Zelda Fitzgerald, identifiquei-me com seu espírito insubordinado. Lembro de passear com minha mãe olhando vitrines e perguntar por que as pessoas não chutavam e quebravam aquilo.” É com esse tom franco e irreverente - e ao mesmo tempo doce e poético - que Patti Smith revive sua história ao lado do fotógrafo Robert Mapplethorpe, enquanto os dois tentavam ser artistas e transformar seus impulsos destrutivos em trabalhos criativos.
Crescida numa família modesta de Nova Jersey, Patti trabalhou em uma fábrica e entregou seu primeiro filho para adoção, antes de se mandar para Nova York, com vinte anos, um livro de Rimbaud na mala e nada no bolso.O sonho de muita gente, afinal, era o final dos anos 1960, e Patti teve de se virar como pôde: morou nas ruas de Manhattan, dividiu comida com um mendigo, trabalhou e dormiu em livrarias e até roubou os colegas de trabalho, enquanto conhecia boa parte dos aspirantes a artistas que partilhavam a atmosfera contestadora do famoso “verão do amor”. Foi então que conheceu o rapaz de cachos bastos que seria sua primeira grande paixão: o futuro fotógrafo Robert Mapplethorpe, para quem Patti prometeu escrever este livro, antes que ele morresse de aids, em 1989.
Só garotos é uma autobiografia cativante e nada convencional. Tendo como pano de fundo a história de amor entre Patti e Mapplethorpe, o livro é também um retrato apaixonado, lírico e confessional da contracultura americana dos anos 1970, desfiado por uma de suas maiores expoentes vivas.
Muitas vezes sem dinheiro e sem emprego, mas com disposição e talento de sobra, os dois viveram intensamente períodos de grandes transformações e revelações - até mesmo quando Robert assume ser gay ou quando suas imagens ousadas e polêmicas começam a ser reconhecidas e aclamadas pelo mundo da arte. Ao refazer os laços sinceros de uma relação muito peculiar, Patti Smith revela-se uma escritora e memorialista de grande calibre - e o modo como seu texto reflete a lealdade dos dois é comovente, apesar de todas as diferenças.
Pincelado com imagens raras do acervo de Patti Smith, Só garotos pode ser lido como um romance de formação de dois grandes artistas do século XX, que apostaram na ousadia, na liberdade e na beleza como antídotos à massificação - e contra todas as recomendações.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

MINEIRINHO - Clarice Lispector



Cartaz do filme de Aurélio Teixeira, em 1967
Mineirinho, que inspirou o conto de Clarice Lispector, foi mais um desses chamados "bandidos", transformados pela imprensa marrom no inimigo público número um. Para os moradores do morro, Mineirinho era uma versão carioca de Robin Hood. Sua morte com 13 tiros foi noticiada com estardalhaço.
Leiam trecho no Correio da Manhã, em 1º de maio de 1962:
"José Rosa de Miranda, o Mineirinho, foi encontrado morto, ontem na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio, com 13 tiros de metralhadora em várias partes do corpo - três deles nas costas e quatro no pescoço - uma medalha de ouro de S. Jorge no peito e Cr$ 3.112 nos bolsos, e sem os seus sapatos marca Sete Vidas, atirados a um canto."


Ë, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes.
Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: "O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu".
Respondi-lhe que "mais do que muita gente que não matou".
(...)
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar "feito doido" de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime.
Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.
Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
(...)
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo.
Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado.
Na hora de matar um criminoso - nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Variações sobre o Prazer


 
Pedagogo, poeta, cronista, contador de histórias, ensaísta, teólogo, acadêmico, autor de livros e psicanalista, Rubem Alves é dono de uma narrativa marcada por reflexões e detalhes. Neste momento, o escritor lança a segunda edição do livro “Variações sobre o Prazer”, onde cita poetas, compositores clássicos, pintores, filósofos e outros e proporciona momentos de liberdade e contentamento em seu melhor estilo.

Como não se deixar envolver pela narrativa de Alves, pontuada por detalhes e reflexões? Autor de mais de 80 livros, “Variações sobre o Prazer” trata-se de uma segunda edição – a primeira recebeu o título Livro Sem Fim, pelas edições Loyola, em 2002. Logo no prefácio, Rubem provoca e convida o leitor a considerar uma questão intrigante: e se tivéssemos apenas mais um ano de vida?

“Faz alguns anos que um grupo de amigos se reúne comigo para ler poesia”(…) “Pois aconteceu que, numa dessas reuniões, quando líamos trechos da ‘Agenda 2001 – Carpe Diem’, encontramos, no dia 2 de fevereiro, essa afirmação de Gandhi: ‘eu nunca acreditei que a sobrevivência fosse um valor último. A vida, para ser bela, deve estar cercada de vontade, de bondade e de liberdade. Essas são coisas pelas quais vale a pena morrer’. Essas palavras provocaram um silêncio meditativo, até que um dos membros do grupo, que se chama ‘Canoeiros’, sugeriu que fizéssemos um exercício espiritual. Um joguinho de ‘faz de conta’. Vamos fazer de conta que sabemos que temos apenas um ano a mais de vida. Como é que viveremos sabendo que o tempo é curto ‘tempus fugit’?”

Rubem propõe, então, o libertar-se de uma infinidade de “coisas tolas e mesquinhas”: uma forma de descobrir o essencial, entregar-se inteiramente ao deleite da vida. Assim, o autor traça olhares sobre a simplicidade, a beleza, o prazer.

“O fato é que, sem que o saibamos, todos nós estamos enfermos de morte e é preciso viver a vida com sabedoria para que ela, a vida, não seja estragada pela loucura que nos cerca”.

Ao longo do livro, Rubem aborda quatro variações: teologia, filosofia, economia e culinária. O leitor mergulha em reflexões inspiradas em personagens reais e fictícios que viveram desfrutando o que acreditavam: de Santo Agostinho ao revolucionário Marx. Do filósofo Nietzsche à cozinheira Babette.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Os Livros




“A única forma de suportar a existência é mergulhar na literatura como numa orgia perpétua” (Gustave Flaubert)


Livros 

"Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.


Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.


Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou o que é muito pior por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:


Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
 Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas."

Caetano Veloso 

 


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Resultado do Sorteio de Livro- O Cavaleiro Inexistente, de Ítalo Calvino.


É com muito prazer que informo que o ganhador do livro foi o blogueiro Alan Farias, de Ribeirópolis, Sergipe, dono do blog :
http://jogandonaparede.blogspot.com/.

Peço ao Alan que me envie pelo e-mail (evsilva2010@gmail.com ) seu endereço completo, pois a editora cia das letras enviará o exemplar desse ótimo livro para sua residência.

Agradeço a todos pela participação e convido a participarem da nova promoção, dessa vez com apoio da Biscoito Fino.



terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Sorteio de Livro no Blog - O Cavaleiro Inexistente, de Ítalo Calvino.




Leia a resenha, você pode ganhar esse livro, aqui no blog, basta ser seguidor e enviar um comentário, dizendo de qual postagem do sabor da letra você mais gostou até hoje , e envie junto sua cidade e e-mail de contato. 
O sorteio será dia 02 de fevereiro. 

Quem divulgar essa promoção em seu blog terá chance em dobro. 
Para ver outras postagens basta clicar no título do blog , no cabeçalho.




Hoje, entrarei em mais detalhes e procurarei mostrar a razão pela qual considero O Cavaleiro Inexistente um "livro de cabeceira".

A história já começa com algo completamente fora do normal. Quando uma série de cavaleiros começa a se apresentar, eis que um difere de todos os outros: Agilulfo, o cavaleiro inexistente. É um diálogo cômico, logo de início, em que passamos a conhecer um cavaleiro que não passa de sua armadura: uma armadura sem corpo. É desta situação surreal que parte a história de Ítalo Calvino.

Interessante que, com o decorrer da obra, o autor nos mostra Agilulfo como oposto aos cavaleiros de sua época. Ele era honrado, limpo, organizado e incorporava todos os atributos de um homem de cavalaria ideal; o herói das fábulas. Nisso, já se faz uma crítica a uma certa sociedade de aparência, a uma mistificação que envolvia o ideal dos cavaleiros, algo que, por uma série de analogias e metáforas, também poderia ser levado à época em que Calvino escreveu o livro, crítica esta ainda muito atual.

A obra, porém, ainda traz muitas outras reflexões. Agilulfo não passa de um invólucro movido pela vontade de ser um cavaleiro, pela crença naquilo que ele é: isso o torna real. Como muitos homens daquela época - e como muitas pessoas hoje - ele se definia pelos seus objetivos, e não necessariamente por aquilo que poderia ser sua essência. A crítica do autor vem da seguinte forma, metaforicamente pensando: Agilulfo era um cavaleiro por fora (tinha o título, seria imortalizado), mas exatamente por colocar os seus objetivos, aquilo que ele fazia e realizava, acima daquilo que ele era, passou a se tornar unicamente o seu objetivo, a sua própria existência se esvaziou e, então, deixou de existir.

Enfim, é um livro escrito de uma maneira próxima até das fábulas, a própria descrição da versão de bolso, por exemplo, classifica-o como um "conto de cavalaria às avessas". Creio ser uma obra extremamente irônica, bem escrita, claro, e de um elevadíssimo valor não só literário como conceitual.


domingo, 30 de janeiro de 2011

Soneto a Katherine Mansfield




Aproveitei a quente tarde de sábado no Rio de Janeiro para visitar os sebos da praça Tiradentes em busca do que acabei encontrando.

Comprei um livro de Katherine Mansfield, autora nascida em 1888, na Nova Zelândia, e educada na Inglaterra.

"Bliss" (Felicidade) foi publicado no Brasil nos anos 50, na época em que a Globo editava autores clássicos traduzidos por grandes escritores. A tradução belíssima. impecável, é do escritor gaúcho Érico Veríssimo, autor de best-sellers nacionais como O Tempo e o Vento. Incidente em Antares e Solo de Clarinete. Reeditado pela Nova Fronteira no início dos anos 70, este volume está, há tempos, esgotado. Consegui  a edição da década de 50. Um belo livro de contos.

Os meus contos preferidos são:  "Casa de Bonecas"que retrata o ambiente acanhado da cidade natal da autora: em torno de uma brincadeira, explodem os preconceitos e fixações de uma sociedade provinciana. " A Festa no Jardim" onde a autora cria ambientes da Nova Zelândia, no transcurso de um episódio corriqueiro, a festa, abre-se a questão da vida e da morte. E "A Mosca", um rápido e derradeiro sobrevôo, o vislumbre dos horrores da guerra que tanto angustiou e deprimiu a escritora em seus últimos anos.

Conheci  Katherine Mansfield através de Clarice Lispector, sua leitora. Poucos sairão incólumes depois de conviver algumas páginas com a prosa de Katherine Mansfield. Provavelmente, o leitor repetirá o gesto de Clarice Lispector em alguma livraria empoeirada. Uma breve e suave pausa no abrasivo noticiário destes dias.

Os críticos acham difícil definir a arte de Katherine Mansfield, considerada a maior contista de língua inglesa de sua geração. Para qualquer leitor, em todo caso, sobressai sua sensibilidade, sua extrema delicadeza e sua habilidade de dizer muito em poucas palavras. Palavras vivas, espontâneas, simples. Personagens reais, incrivelmente reais em sua trivialidade. Uma aula de canto.




Soneto a Katherine Mansfield

Vinicius de Moraes


O teu perfume, amada — em tuas cartas
Renasce, azul... — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.

Relembro-as, vou... nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.

Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!... e a primavera
Vem já tão próxima! ...(Nunca te apartas

Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.
  

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

"Quando morri,um dia abri os olhos e era Brasília..." C.L.


Brasília é construída na linha do horizonte. – Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas de digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. – Quando morri,um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. – Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. – Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. – Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. – Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira. – Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. – Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. É por isso que em Brasília não há onde esbarrar. Os brasiliários vestiam-se de ouro branco. A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos. Não havia em nome de que morrer. Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa. – Esperei pela noite, noite veio, percebi com horror que era inútil: onde eu estivesse, eu seria vista. O que me apavora é: é vista por quem? – Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construções com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete nos jornais. – Aqui eu tenho medo. – Este grande silêncio visual que eu amo. Também a minha insônia teria criado esta paz do nunca. Também eu, como eles dois que são monges, meditaria nesse deserto. Onde não há lugar para as tentações. Mas vejo ao longe urubus sobrevoando. O que estará morrendo meu Deus? – Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. – É uma praia sem mar. – Mamãe, está bonito ver você de pé com esse capote branco voando (É que morri, meu filho). – Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria pra onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. Prenderam-me na liberdade. Mas liberdade é só que se conquista. Quando me dão, estão me mandando ser livre. – Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. – Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez. – Pois como eu ia dizendo, Flash Gordon... – Se tirasse meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. – Cadê as girafas de Brasília? – Certa crispação minha, certos silêncios, fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte. – É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la.
[...]

Clarice Lispector