sábado, 16 de outubro de 2010

Ópera dos Vivos - Companhia do Latão


O teatro como campo da batalha ideológica. “Ópera dos Vivos - Estudo Teatral em 4 Atos” é a mais ambiciosa das realizações da Companhia do Latão.
Revisão crítica da cultura brasileira recente, confirma a inserção do grupo na tradição dialética do teatro de Bertolt Brecht (1898-1956).
O espetáculo fica no CCBB do Rio até o dia 7 de novembro e tem estreia prevista em SP para janeiro do ano que vem. Suas quatro partes distintas se articulam como uma unidade coerente, que é consubstanciada pelo talentoso grupo de atores e músicos, responsável por carrear um público atento através de vários espaços cênicos com formas teatrais distintas.
Se há um tema central é a ânsia do grupo por uma maior politização do teatro na perspectiva de uma arte resistente à mercantilização cultural. Para isso, revisita-se a experiência de artistas que, no passado, engajaram suas vidas e obras na luta política.
O primeiro ato -”Teatro”- remete ao final dos anos 1950, em Pernambuco, quando, a partir das “sociedades mortuárias” - associações criadas pelos lavradores para garantir-lhes caixões em seus enterros- emergiram as Ligas Camponesas. A forma da encenação emula os espetáculos do Centro Popular de Cultura da UNE e do Teatro de Arena com uma exposição didática dos mecanismos de opressão.
Se uma das marcas do Latão, no seu início, era a recusa dessa forma canônica do teatro engajado, caracterizada por atores perfilados e de punhos cerrados olhando o público nos olhos e denunciando a exploração em canções tocantes, agora ela é assumida como exercício de estilo e homenagem, compondo o painel revisionista pretendido. Esboça-se a imagem do que morre de pé.
O segundo ato -”Cinema”- é, literalmente, um filme que dialoga com um dos clássicos do cinema novo, “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha. Os atores e os personagens que encarnaram antes se desdobram em um novo contexto temporal e no registro da alegoria próprio ao cinema glauberiano.
Invertendo-se a trama do filme original, o protagonista é um banqueiro que flerta com as ideias de esquerda e acaba assumindo a defesa de sua própria classe, a burguesia. Aqui o tempo está metaforicamente morto.
O terceiro ato da “Ópera dos Vivos”, da Companhia do Latão - “Música Popular”-, debate com Roberto Schwarz a leitura crítica que este fez, nos anos 1960, do tropicalismo, como uma tendência conformista por trás de fachada ultramoderna.
Os personagens participam do show de Miranda, cantora de protesto famosa que reaparece depois de três anos em coma e estranha os novos valores em voga.
Em diálogo com a estética do show de MPB, é a parte em que o eixo ideológico revela-se mais vulnerável.
A formalização cênica da tese de Schwarz soa caricata e anacrônica e a revisão crítica configura mais um revanchismo contra os tropicalistas do que um olhar distanciado. A cultura, agora, tornou-se um privilégio de mortos-vivos.
O quarto e último ato -”Televisão”- atualiza a discussão e articula os anteriores, dando um sentido claro ao todo. Nele, a dramaturgia e a encenação de Sérgio de Carvalho alcançam alta densidade dramática partindo de situação emblemática da produção cultural hoje.
No estúdio de uma grande rede de televisão, é o último dia de gravação de uma série.
Alguns personagens dos atos anteriores confrontam seus descendentes, o que é emblemático do próprio diálogo do grupo com a geração anterior. A ideia do “morrer de pé” reaparece, agora como projeto de luta.
A Cia. do Latão cumpriu com esse largo espetáculo o seu objetivo de testar formas de representação realista nas condições adversas de “um mundo que desmorona”.
Mais difícil é aceitar a tese, insistentemente reiterada, de que a soberania da “forma mercadoria” sobre tudo e todos nos condena à morte em vida. A ideologia pesa e constrange a razão a minimizar as potências anímicas desse belo exercício cênico.

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