Pertubador! Não pela quantidade de sangue (não há), não pelo escárneo (não há), não pelas imagens chocantes (não há). Mas, no entanto, o filme ronda a sua cabeça, seus ossos e seus músculos depois dele ter terminado há muitas horas, dias… Como filmar a maldade? Não essa maldade novelesca de reality show, não a maldade maniqueísta que luta contra o bem, não a maldade que vemos no outro, mas a maldade que está dentro de todos nós. Exatamente isso é “A Fita Branca”, de Michael Haneke, o exemplo mais profundo de como filmar a maldade em sua essência.
Para tanto, o diretor austríaco se usa de um arquétipico fundamental pra desmontá-lo e trucidá-lo em fotogramas: A pureza das crianças. A imagem angelical que ainda persiste no imaginário ocidental sobre as crianças – mesmo com quase um século de Freud e suas teorias – é desmontado paulatinamente. São representações como essa da pureza das crianças ou do macho adulto sempre no comando – mesmo com toda a luta das minorias – que se afirmam nos momentos que a Razão cochila.
O que Haneke nos oferece é uma verdadeira anatomia moral e psicológica dos moradores do vilarejo alemão. Em "A Fita Branca", o diretor consegue um efeito parecido com outro filme seu, "Caché" (2005): enquanto o público se preocupa em desvendar os crimes, o filme passa por um deslocamento, indo do espaço público para o espaço privado, sempre com muita sensibilidade. Dentro das quatro paredes de diferentes famílias, tomamos conhecimento de uma estrutura patriarcal altamente autoritária, marcada pelo signo da punição e da disciplina. Em uma cena, por exemplo, vamos um pai bolinar a própria filha durante a madrugada. Enquanto isso, outro pai, o pastor da cidade, amarra as mãos do filho adolescente na cama para impedir que ele se masturbe (um pecado mortal). Por isso, não surpreende que o professor do vilarejo chegue à bizarra conclusão de que são aquelas crianças, em sua maioria submetida a uma educação fortemente repressora, as responsáveis pelos misteriosos crimes.
A tese de Haneke é que esta estrutura autoritária da sociedade alemã, sobretudo a patriarcal, gerou fortes sentimentos de indiferença, crueldade e desprezo entre a geração de jovens do início do século XX, a mesma geração que anos mais tarde abraçaria a causa do nazismo, tendo em Hitler muito mais do que um governante, mas um verdadeiro pai (sabemos, por exemplo, que o próprio Hitler tivera vários problemas com o seu pai durante a infância e adolescência). Logo no início do filme, o próprio narrador em off avisa: “os eventos que se passaram ali, naquele vilarejo, no início do século, são de extrema importância para se compreender os eventos dramáticos que aconteceriam na Alemanha, décadas depois”.
Essas relações de cunho causal aparecem em diversas marcas simbólicas ao longo do filme. A mais evidente é a tal fita branca do título, que o pastor força seus filhos a usarem. As crianças deveriam usar a fita para que pudessem sempre lembrar a sua condição de pecadores, uma antevisão da estrela de David usada pelos judeus durante parte do Terceiro Reich como elemento de uma estratégia de distinção social. Outra marca que merece destaque é o desprezo com que uma criança com deficiência mental (filho do médico) é tratada pelas demais crianças e adultos do vilarejo, ao ponto de ter seus olhos furados pelos autores dos demais crimes. O uso deste acontecimento, no filme, não tem nada de fortuito. Sabe-se que a Alemanha assassinou milhões de alemães deficientes mentais, sob a defesa de extirpar os “incapazes socialmente”. Esses crimes são considerados por diversos historiadores, inclusive, como um preâmbulo macabro para o que aconteceria com os judeus pouco tempo depois. Por fim, o mesmo tipo de alusão pode ser percebida quando um pai grita e espanca violentamente o filho (uma das cenas mais fortes do filme) ao saber que ele havia roubado a flauta do filho do barão. É praticamente impossível não reconhecer naquela cena o mesmo ímpeto de violência praticado pelos SS em campos de concentração.
Mas no filme, de maneira sutil, são as crianças que arquitetam e perseguem os diferentes – mas desde já isso não é explícito, o que é mais perturbador ainda. Você sabe o tempo todo sem ter provas, sem poder culpá-las. O álibi da pureza delas nos cega como quando olhamos pra neve. O que é diferente e fora das regras normativas daquela pequena comunidade é simplesmente dizimado: Seja a família desfuncional do médico do vilarejo (a questão moral), juntamente com a parteira e seu filho com problemas mentais (a questão física/étnica), além da família pobre de camponeses e o aristocrata do vilarejo (a questão econômica). Muitos críticos enxergam aí, nesse tripé, a alegoria da consolidação do nazismo que surgirá duas décadas depois. Acho válida a visão apesar de pouco profunda.
Isso está para além de um tempo histórico. É o pacto com a maldade de todos nós que reside a essência incoveniente do filme. Quando nos silenciamos diante do mal, quando nos enganamos e desvirtuamos os acontecimentos para não encararmos de frente a maldade, quando o nosso mal é a passividade ou pior, a desautorização de acontecimentos graves para que possamos ter a consciência tranquila ou ainda quando acreditamos, por facilidade, que esse é o bem. Nesse momento somos todos maus.
UAU... QUERO VER ESSE FILME.
ResponderExcluirTodos andamos de mãos dadas com o bem e com o mal... Ora somos bons, ora somos maus...
Voce e suas indicações maravilhosas.
So... "Was machst du denn?". Fazendo ou se omitindo, cada um carrega seu peso e sua leveza... :)
ResponderExcluirCrianças são seres perversos.
ResponderExcluirEsse filme deixou-me aturdida.
Incrível! Sabe dizer algum link onde eu possa fazer o download? Sempre gostei de filmes antigos, ainda mais esses que retratam gerações de séculos passados. Você tem alguma resenha de ' O Grande Ditador' ou ' Tempos Modernos'? Sou um grande fã de Chaplin, mas infelizmente não acho muito suas obras =( Enfim, adoro filmes antigos. Portanto, continue a postar! srsrsrs
ResponderExcluirSeu post me deixou sem ar, imagina o filme então? Eu nunca acreditei que as crianças são 'boazinhas' e puras, conheço casos de maldades infantis.
ResponderExcluirVou tentar assistir este filme e já vou recomendá-lo para a minha irmã (que ama a Alemanha).
ps: Obrigada por divulgar o meu blog de flamenco. Confesso que ele ainda não tem uma ' personalidade'. Eu ainda não a achei, mas estou procurando.
Ai em Niteroi, tem uma pessoa que pode te ajudar com informações sobre o Flamenco, ele se chama Ricardo Samel. Procure no google informações e contantos e ele também tem facebook.
beijos
Boa dica! Já esta entre os que tenho que assistir...
ResponderExcluirAbçs*
Cara Evandro, é incrível como você escreve muitíssimo bem, ótima resenha.
ResponderExcluirQuanto ao filme, faz cerca de dois meses que tenho uma cópia em meu poder, mas resistiu à vê-lo... depois da resenha, este será o próximo, talvez o veja ainda hoje.
Quanto ao nazismo, recomendo um super documentário, (há uma resenha no meu blog (artiblogs em destasque), chama se Homo Sapiens 1900...
Parabéns pelo excelente conteúdo que sempre posta!
Abraço
Nossa, que super interessante o seu post. Só em lê-lo deu para percer o quanto este filme é intenso, inquietante e reflexivo. Adoro películas assim.
ResponderExcluirParabéns pelo texto super envolvente, meu caro amigo.
Adorei a dica!
Um forte abraço.
Te espero lá no blog ;)
www.nicellealmeida.blogspot.com
Esse filme realmente fascina quem ver, só tive a oportunidade de assistir alguns meses atrás na tv por assinatura e sem dúvida é um baita filme.
ResponderExcluirTenho alguns selos para vc lá no meu blog, ate +
TENHO QUE VER ESSE FIME AINDA, RAPAZ!!!
ResponderExcluirJÁ ACHO O HANEKE UM SÁDICO DE PRIMEIRA, RS.
ABRS!
www.vemaquinomeublog.blogspot.com (um post novo lá no Blog)
Oi, Evandro, tudo bem?
ResponderExcluirQueria tanto que "A Fita Branca" tivesse levado o Oscar de melhor filme estrangeiro ano passado. Infelizmente não levou, mas o filme é muito bom mesmo. Ótima dica!
Abraço.
Evandro, Obrigada pela visita, pelo Carinho e o comentário deixado no Humor Negro.
ResponderExcluirAbraços e Ótima Semana!
Pelo trailer e sua análise, o filme aparenta ser muito bom. Vou assistir.
ResponderExcluirValeu pela dica.