sábado, 12 de fevereiro de 2011

MINEIRINHO - Clarice Lispector



Cartaz do filme de Aurélio Teixeira, em 1967
Mineirinho, que inspirou o conto de Clarice Lispector, foi mais um desses chamados "bandidos", transformados pela imprensa marrom no inimigo público número um. Para os moradores do morro, Mineirinho era uma versão carioca de Robin Hood. Sua morte com 13 tiros foi noticiada com estardalhaço.
Leiam trecho no Correio da Manhã, em 1º de maio de 1962:
"José Rosa de Miranda, o Mineirinho, foi encontrado morto, ontem na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio, com 13 tiros de metralhadora em várias partes do corpo - três deles nas costas e quatro no pescoço - uma medalha de ouro de S. Jorge no peito e Cr$ 3.112 nos bolsos, e sem os seus sapatos marca Sete Vidas, atirados a um canto."


Ë, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes.
Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: "O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu".
Respondi-lhe que "mais do que muita gente que não matou".
(...)
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.
Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.
Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar "feito doido" de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime.
Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.
Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.
(...)
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo.
Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado.
Na hora de matar um criminoso - nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno

7 comentários:

  1. Obrigado por me aceitar aqui e ser presença lá nas terras de Minas... Vamos estreitando os mundos!!! Seu blog é uma ponte importante. Abraços,

    Sumayra

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  2. Evandro,fins de semana tiro um tempo para ver alguns blogs...Entre eles o seu é uma leitura obrigatória...Sempre passando algo bom...Grande domingão para o amigo.

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  3. Excelente postagem. A Clarice é genial.

    Te desejo um ótimo final de semana.

    abraços

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  4. Estudo Clarice no doutorado e fico feliz quando alguém fala de seu universo, que sinto como se fosse o meu. Acho que isto aqui diz tudo de seu post:"Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado". Um grande abraço!

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  5. Evandro, Mineirinho e Cara-de-Cavalo foram bandidos ditos 'românticos', da época em que o Rio ainda tinha alguma humanidade.
    Hoje vemos apenas os 'estudiosos' positivistas revelarem consequências artificiais do problema social brasileiro, sem nada quererem com as causas essenciais da identidade deste povo.

    Abraço e tenha um Ótimo Domingo!

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  6. Você sempre surpeendente!

    E os ingressos para Juventude?

    pode ser pra terça agora?...

    Recebeu meus e-mail's?

    Abração!

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  7. Olá querido irmão Evandro,

    Voce e sua sensibilidade, como sempre, despertando nossos mais profundos sentimentos. adorei essa postagem, e seu blog é tudo de bom, infelizmente que o meu não siga esse mesmo sucesso. Mas fico feliz só em saber que está na sua relação de favoritos. Olha só, respeito a esse texto da Clarice, estou procurando, desesperadamente, o arquivo em mp3, de trabalho antigo da Bethania, onde ele reciba o texto na íntegra. Voce sabe onde eu posso baixar esse arquivo? Caso voce tenha, poderia enviar para mim por e-mail? No mais é isso, além da saudade que rói.
    bjs

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