quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Nossos planos são muito bons...




"Com amor no coração
Preparamos a invasão
Cheios de felicidade
Entramos na cidade amada
Peixe Espada, peixe luz
Doce bárbaro Jesus
Sabe bem quem né otário
Peixe do aquário nada

Alto astral, altas transas, lindas canções
Afoxés, astronaves, aves, cordões
Avançando através dos grossos portões
Nossos planos são muito bons

Com a espada de Ogum
E a benção de Olorum
Como um raio de Iansã
Rasgamos a manhã vermelha
Tudo ainda é tal e qual
E no entanto nada igual
Nós cantamos de verdade
 E é sempre outra cidade velha"

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

As Benevolentes


Termei de ler após 2 anos "As Benevolentes" do escritor Norte-Americano (mas radicado na França, aliás o livro foi escrito em francês e não em inglês), Jonathan Littell.
Littell com este grande livro, tanto em tamanho como em qualidade conta-nos as memórias de um ex oficial das SS alemão, Maximilien Aue, filho de pai alemão e mãe francesa que tem uma infância conturbada, e uma estranha relação com a irmã. Tudo isto vai moldar a sua personalidade e torna-lo numa pessoa bastante instável e com uma sexualidade fora do normal.
É através de Aue e da sua intervenção na guerra que Littell nos dá a conhecer o lado e a perspectiva alemã do conflito, principalmente a guerra na frente Leste, nomeadamente na Ucrania e depois no cerco de Estalingrado, onde ele descreve com uma exatidão todo o sofrimento e desgraça que se abateu sobre os soldados e população civil, numa das batalhas mais terríveis e sangrentas da II Guerra Mundial, a descrição da vida dos soldados, o frio intenso, a falta de condições as doenças, os mortos, os mutilados, posso dizer que são das páginas mais violentas que li até hoje.
Após ser ferido e regressar a Berlim, Aue (que é formado em direito e jurista), é colocado a trabalhar junto a nomes sonantes da "Solução Final" para o problema dos judeus, trabalha com Himmler; Eichmann e Speer entre outros. Nesta parte do livro, Littell debruça-se sobre os judeus, os campos de concentração, descrevendo os mesmos e com bastante pormenor a brutalidade do tratamento que era dado aos judeus.
Com o aproximar do fim da guerra, e a iminente invasão por parte dos soviéticos, a loucura alemã desses dias foi levada ao extremo afetando igualmente Aue, levando ao final do livro e a sua respectiva fuga.
Este livro é de uma enorme qualidade, recebendo o seu autor dois dos maiores prêmios literários franceses, o Goncourt e o Grande Prémio do Romance da Academia Francesa. Apesar disso é um livro que lançou uma enorme polêmica, sendo até mal recebido por muita gente e críticos. A meu ver é excelente, talvez dos mais violentos que li até hoje, tanto emocionalmente como psicológica e fisicamente, tem passagens muito "pesadas", descrições terríveis e pormenorizadas, mostra até onde o homem pode chegar, tornar-se numa "besta", um "monstro" que consegue dizimar milhões de outros seres humanos em nome de um ideal, de uma política e da loucura de um ou alguns homens.
Para mim a parte negativa deste livro (mas que compreende-se que assim seja), são as inúmeras designações em alemão, tanto dos postos dos soldados, das repartições, ministérios, serviços, etc, etc, que obriga a uma constante busca no glossário que vem no fim do livro.
Para quem o queira ler, sugiro que o leia com um estado de espírito livre e com força de vontade porque não é um livro facil de ler devido às razões atrás referidas e às suas 884 páginas. Eu mesmo levei dois anos para conclui-lo.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Salve salve essa Nêga, que axé ela tem...

Não sou fã de Maria Gadu, mas essa música me emocionou demais!
Dedico à  minha avó - mulher de axé, que se foi há exatamente 3 anos!

"Há Tanto Tempo Que Te Amo" e o resgaste das relações




À primeira vista, o título" Há Tanto Tempo Que Te Amo" pode levar a pensar que este filme francês se trate de um drama romântico sobre paixões reprimidas e amores não concretizados. Nada mais enganador. A frase vem de uma música que tem uma grande importância para as duas irmãs protagonistas da história e que as remete ao resgate de um doloroso passado.

A personagem principal da trama, Juliette (Kristin Scott Thomas), sai da prisão após 15 anos. Cumpriu a pena por assassinato. Ainda em condicional, terá que comparecer a Delegacia a cada 15 dias, para assinar um prontuário. Aqui, acaba por despertar a simpatia do Delegado. Ambos, amargurados pelo rumo que tomaram suas vidas. Ainda comentando um pouco sobre essa relação, parte dele um outro crédito a ela para uma volta à sociedade. Mesmo não sabendo o porque ela fez o que fez, ele credita nela uma oportunidade de um recomeço.

Juliette aceitou o seu crime. Nada poderia lhe doer mais do que tivera que fazer. Mas houve uma dor se não maior, tão dolorida quanto. A de ser excluída pela própria família: os pais e uma irmã caçula. Todos aqueles anos, sem nenhum contato.

Mas é essa sua irmã, Léa, que a acolhe em sua casa. Junto a sua família. Pois agora, não era mais a menina que fora obrigada pelos pais, a esquecer de Juliette. Ainda ressentida, já deixa claro que quem a procurou fora o pessoal do Serviço Social. Léa entende a armadura da irmã, e diz que eles fizeram muito bem em procurá-la.

Quem ela matou, é dito logo no início. O porque, apenas no finalzinho. Deixo a sugestão que não fiquem voltado apenas nisso. Pois além de perderem um pouco do crescimento dessas duas mulheres – e isso eu ressalto por mostrar o universo feminino com muita sensibilidade -, poderão não perceber tudo mais. No que resultou na vida de todos com aquela tomada de decisão de Juliette a quinze anos atrás, como na dos demais com a convivência atual com ela.

Um outro ponto que quero salientar, é sobre o de empregar ex-detentos. Eu destaco isso também num outro filme, recentemente. No ‘Evidências de um Crime‘. Quando esse assunto é abordado num filme, abre caminho para uma diminuição no preconceito que há no mundo real. Essa chance deles voltarem de fato a sociedade após cumprirem sua sentença. Tendo um emprego já terão como começar uma vida nova.

‘Há tanto Tempo que Te Amo‘ é um líbelo ao amor fraternal. Mesmo a mais forte das criaturas, há de chegar uma hora que vai precisar da mão estendida de alguém não tão forte. Às lembranças pesadas, o tempo se encarregará em apagar. São, foram os espinhos…

O filme aborda um outro tema, que de certa forma também é algo que ainda não é tão aceito pela sociedade. Dai, também é interessante o debate que fará surgir após assistirem. Mas é melhor parar por aqui, para não correr o risco de trazer spoiler.

Assistam! É um filme belíssimo! Nota 10.


segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Nina Simone

 A primeira vez que vi esse vídeo, fiquei maravilhado e chorei.
 Aqui vemos Nina Simone, para mim a maior cantora que esse planeta já teve (desculpem-me os fãs de Billie Holiday e Sarah Vaughan), no Montreux Jazz Festival 76, esfacelando de maneira magistral a canção Feellings.


sábado, 25 de dezembro de 2010

Chet Baker - Prince of Cool


Chet Baker foi como um anjo que desceu ao inferno. No início da carreira, encantava as mulheres pela beleza e o canto suave. Vinte anos depois, era um junkie de rosto sulcado, perseguido pela polícia. Com seu trompete romântico, foi um dos criadores do "west coast jazz", a variante californiana do cool lançado por Miles Davis e Gerry Mulligan, e, como cantor, influenciou a bossa nova.


Chesney Henry Baker nasceu em Yale, Oklahoma, em 23 de dezembro de 1929, e se mudou com a família para a Califórnia, em 40. Na infância, começou a cantar na igreja e ganhou um trompete do pai. Aos 16 anos, alistou-se no Exército e começou a tocar em bandas militares.

Em 52, já como músico profissional, acompanhou Charlie Parker em turnê pela costa oeste. Em seguida, entrou para o seminal Gerry Mulligan Quartet, que criou o estilo "west coast". Suas versões de 'My Funny Valentine' e 'Moonlight in Vermont' com Mulligan são clássicas. Dois anos depois, ele conquistou um novo público ao lançar-se como cantor, à frente do próprio quarteto.

Apesar do sucesso, sua vida ia de mal a pior, com seguidas detenções por porte de heroína. Na Itália, onde morou nos anos 60, passou mais de um ano preso. O vício deteriorou sua reputação nos Estados Unidos, embora ele ainda fosse aclamado na Europa, onde, nos anos 70 e 80, gravou alguns de seus melhores discos.
Em 13 de maio de 88, Chet teve uma morte trágica, ao cair da janela de um hotel em Amsterdã. A causa do acidente tem duas versões: suicídio ou excesso de drogas. O que dá quase no mesmo.

Uma nova cinebiografia de Chet está sendo filmada e deve se chamar "Prince of Cool". Josh Hartnett ("Dália Negra", "Sin City", "Pearl Harbor") personifica o trompetista. Ele já foi retratado no documentário "Let's Get Lost", de Bruce Weber, lançado quatro meses após sua morte e indicado ao Oscar. E a ficção "Apaixonados Impetuosos (All the Fine Young Cannibals)", de 60, foi claramente inspirada no então jovem astro. O nome do protagonista, Chad Bixby (interpretado por Robert Wagner), fazia uma dupla referência: a Chet e ao pioneiro do dixieland Bix Beiderbecke, uma de suas maiores influências. E foi desse filme que a banda pop Fine Young Cannibals tirou o nome.

Embora não intencionalmente, o título de um filme estrelado por Chet em 55 parecia simbolizar sua tragédia pessoal: "Horizonte do Inferno". Ele atuou também em um filme italiano, "Urlatori alla Sbarra", de 60.
Bossa nova

A voz frágil e suave de Chet influenciou desde a bossa nova até Caetano Veloso. Não por acaso, ele acabou se aproximando de músicos brasileiros. Gravou com o pianista Rique Pantoja os discos "Chet Baker & The Boto Brasilian Quartet", e "Cinema 1". Em 85, veio ao Free Jazz Festival.






quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Baudolino, Umberto Eco



Esse é um daqueles que dói fechar a última página... Contada pelo próprio Baudolino ao historiador bizantino Nicetas, durante a invasão dos "bárbaros latinos" (cruzados) a Constantinopla , a história inicia quando ele era uma criança, numa terra escondida em meio a uma constante neblina, nos confins da Itália medieval.

Baudolino era um mentiroso por excelência e, graças à isso, foi adotado por Frederico, o Barba Ruiva, imperador do Sacro Império Romano Germânico (1152 a 1190). A partir daí, sua vida deslancha num emaranhado de mentiras que se tornam realidade. Baudolino, na adolescência, vai estudar em Paris e lá conhece alguns rapazes que serão seus amigos pelo resto de suas vidas, bem como seus companheiros na busca pelo Santo Graal ou Greal, como o autor o chama, e do lendário Reino do Preste (Padre) João, um reino cristão que deveria existir no extremo oriente do mundo, nas proximidades do paraíso terrestre.

Com seu dom para a mentira, e com o objetivo de engrandecer ainda mais seu pai adotivo, Baudolino manipula a realidade e consegue, incluisve, encontrar os corpos dos Reis Magos e canonizar Carlos Magno, para se ter uma idéia do que é a genialidade de Umberto Eco nessa história maravilhosa.

Baudolino é uma espécie de Forrest Gump da Idade Média. Com uma diferença: enquanto Forrest era um tolo, Baudolino é um espertalhão mentiroso.

A graça do livro está justamente aí: em ouvir uma história sem estar certo da idoneidade de quem a conta. De todos os fatos narrados, muitos são mentira e muitos são verdade, mas é impossível separa o joio do trigo.

Baudolino dá a impressão de ter sido escrito para provar uma das teses mais importantes de Eco: a obra aberta.

Na década de 60, quando o mundo das artes era sacudido por uma vanguarda pós-moderna, Eco escreveu um livro definindo o que ele chamou de Obra Aberta em oposição ao que ele chamou de discurso persuasivo, ou fechado.

O discurso persuasivo traz a mensagem pronta para o receptor. O leitor de um livro tem apenas o trabalho de descobrir o que o escritor pretendia com seu livro. Uma única leitura era a permitida.

A obra aberta revolucionava o sentido da arte forçando o receptor a ter participação ativa no processo de fruição. Assim, cada pessoa que lesse um livro ou ouvisse uma música deveria ter um entendimento próprio sobre seu significado. Já não havia mais certezas a serem desveladas. O próprio conceito de realidade é colocado em questão. Pela teoria da relatividade, cada observador teria sua própria interpretação de realidade, dependendo do ponto em que estivesse observando determinado fenômeno.

Da mesma forma, em Baudolino, realidade é o que o protagonista conta, mas ele pode estar mentindo e, assim, a realidade é relativizada. O leitor não deve confiar nem mesmo no narrador.

Mas não é necessário conhecer o conceito de obra aberta para gostar de Baudolino. Eco, como sempre, consegue transformar temas complicados (como a política medieval) em uma leitura deliciosa que envolve uma história policial, lendas medievais, uma expedição em busca do Santo Graal e até uma referência à Alexandria, cidade natal do escritor.

Simplemente um livro inesquecível, que prende a atenção, que nos faz viajar e dividir os sentimentos desse protagonista que mente sim, mas pelo bem de sua terra e daqueles que ama.Um livro para ler e reler e encontrar novos significados a cada nova leitura.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Chico Buarque na TV



O casamento de Ary está nas últimas. Uma briga com a mulher desencadeia a peregrinação pelos bares de São Paulo. Ele corre a avenida Paulista, desce a rua Augusta, alcança o viaduto do Chá, passa pelo edifício Copan.

Nessa busca por sabe-se lá o quê, ele conhece Vera. A companhia é agradável. O sexo, inesquecível. Paixão instantânea. No dia seguinte, vem a conta: Vera é prostituta, ele não sabia. E cobra de Ary a noitada --ironicamente, a mais romântica que ele teve nessa sua triste vida.

Assim, resumido, o argumento de "Folhetim", um dos quatro episódios da microssérie "Amor em Quatro Atos", que estreia na TV Globo em janeiro, parece até ter sido inspirado por algum conto de "A Vida como Ela É", de Nelson Rodrigues.

Mas não. Foi a letra da canção homônima de Chico Buarque (aquela dos versos: "Se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem sim") que conduziu o roteiro do episódio, trouxe seus personagens e, no fim, que vai render sua trilha sonora.

O mesmo vai acontecer com os versos de "Vitrines", "Mil Perdões", "Construção" e "Ela Faz Cinema", canções de Chico em que os roteiristas Antonia Pellegrino, Marcio Alemão Delgado, Estela Renner e Tadeu Jungle foram buscar as outras histórias.

O projeto foi criado por Rodrigo Teixeira, que comprou os direitos de dez canções de Chico para este e outros fins.

PACOTE CHICO

Já está publicado, pela Cia. das Letras, o livro "Essa História Está Diferente", em que dez escritores criaram contos sobre as músicas do compositor. Baseado em "Olhos nos Olhos", Karim Aïnouz está produzindo o longa "Eclipse da Violeta" para o cinema.

"Amor em Quatro Atos" completa o pacote na TV. Coprodutora do projeto, a Globo disponibilizou alguns de seus atores para a série.

Entre eles estão Carolina Ferraz, Malvino Salvador, Vladimir Brichta, Alinne Moraes, Marjorie Estiano, Dalton Vigh e Camila Morgado.

A supervisão geral ficou sob os cuidados de Roberto Talma. A direção foi dividida entre Talma ("Mil Perdões"), Tadeu Jungle (capítulo que une "Construção" e "Ela Faz Cinema") e Bruno Barreto.

Barreto é o único que assina dois episódios. O cineasta está tratando "Folhetim" e "Vitrines" como duas metades de uma única história. Um longa de 80 minutos.

Depois que se apaixonar pela prostituta em "Folhetim", Ary passa todo o episódio "Vitrines" obcecado por ela. Segue seus passos às escondidas, como diz a canção, "catando a poesia que [ela] entorna no chão".

"Outro dia, brinquei com o Chico [Buarque]", conta. "Nos anos 70, ele fez uma música ['O que Será'] para o meu filme 'Dona Flor e Seus Dois Maridos'. Agora, faço um filme para músicas dele. Enfim, estamos quites."

Se o formato pegar, podemos esperar canções de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Jobim virando histórias em futuras noites da Globo.

                                                          Fonte: Ilustrada, Folhaonline

Aos amigos, "Selo Esse Blog Tem Sabor"


 Acho que ter um blog significa ter um espaço para expor nossos sonhos, desejos, aquilo que nos toca e move nosso coração, nossa indignação, nossos gostos musicais, os filmes e livros que marcaram nossa vida.
Com três meses de existência o blog Sabor da Letra fez amigos, se emocionou, se indignou, riu, aprendeu muito com cada um dos blogs abaixo, e é por encontrar nesses amigos o doce sabor da letra é que fiz esse selo:

Vanessa - http://vemcaluisa.blogspot.com/
Jones - http://opequenoser.blogspot.com/
Erica - http://adoropalavriar.blogspot.com/
Kiko - http://desventurasinimaginaveis.blogspot.com/ 
Wellington - http://neowellblog.blogspot.com/
Davi - http://na-cafeteria.blogspot.com/



terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Vamos comer Caetano em 90 garfadas



Para uns, ele tem sido bússola. Para outros, desorientação. De um jeito ou de outro, Caetano Veloso sempre foi mais do que cantor e compositor. Nas últimas quatro décadas, provocou polêmicas com músicas, comportamentos e opiniões. Recusou o papel de guru. "Não precisa ninguém me acompanhar", cantou. Mas nunca deixou de expor suas idéias. E o fez com eficiência, aliando articulação e uso da mídia.

Esse Caetano articulista, prosador, ensaísta em seus melhores momentos, emerge de O mundo não é chato, uma coletânea de textos organizada por Eucanaã Ferraz que sai pela Companhia das Letras. São artigos, releases e críticas, escritos em diferentes momentos. Uma viagem que começa com os primeiros textos do jovem crítico de cinema dos anos 60, passa pela correspondência gerada no exílio londrino dos anos 70 e chega ao discurso mais recente. É um papo sobre qualquer coisa: da censura ao amor, da estética à política, da sexualidade à manipulação da imprensa.

Como afirma Ferraz, na apresentação da obra: "A escrita de Caetano impressiona sobretudo por sua visão dos matizes a meio de uma coisa e outra, por sua procura extremada, e nunca concluída, por um ponto em que instalar a palavra, apta a exercer sua razão ética, estética e política". Para Ferraz, a prosa de Caetano é um posicionamento político. Um olhar político sobre a música, o brasileiro, o Brasil e sobre ele mesmo.

O livro reúne 90 textos, divididos por temas: Brasil, música, discos, cinema, teatro e literatura, gente, estrangeiro e prosa, com impressões, opiniões e desabafos. Organizados sem ordem cronológica, deixam fluir o sentimento instantâneo, revelando o que pensa o artista no momento em que fala de uma peça, de um fenômeno cultural, do exílio, ou de outro personagem do cenário cultural.

Ao deixar Santo Amaro da Purificação, no interior da Bahia, aos 18 anos, Caetano Veloso encontrou na Salvador do início dos anos 1960 intensa atividad e cultural. Ainda sem um rumo definido, Caetano vive essa agitação cultural e dá os primeiros passos na carreira musical.

Ao mesmo tempo, amante do cinema, em especial, do cinema italiano, escreve críticas para os jornais Diário de Notícias, de Salvador, e O Archote, de Santo Amaro da Purificação. Os textos revelam um Caetano articulado, apesar de uma linguagem ainda rebuscada, mas com uma noção clara da função de crítico: "E a missão dos críticos não pode ser ensinar-nos o que é cinema, mas induzir-nos a estudá-lo; é espicaçar no espectador inteligente a curiosidade sobre a arte cinematográfica; é levá-lo a procurar ler os compêndios que já foram escritos sobre a cinestética. É orientá-lo".

Em 1969, depois de dois meses presos, e de um período de confinamento na Bahia, Caetano e Gilberto Gil são "convidados" a deixar o Brasil e vão para Londres. Caetano passa a escrever suas impressões de exílio para O Pasquim. Nas páginas do jornal carioca, o músico baiano solta o verbo e responde a críticas feitas pelo poeta Ferreira Gullar a João Gilberto e Sérgio Mendes; analisa a música pop nos anos 70; fala sobre um novo disco de Gal e mostra todo o saudosismo ouvindo Luiz Gonzaga e Maria Bethânia. Foi nas entrelinhas dos artigos, no entanto, que Caetano deixou transparecer o quanto o exílio o marcou. Reflexões sobre a vida em um outro país, uma língua diferente.

Pouco tempo depois, em 1972, já de volta ao Brasil, Caetano passaria de colaborador a alvo de críticas da turma do Pasquim. A principal delas estaria relacionada a uma suposta decepção política em relação ao músico baiano. Talvez para responder ao jornal, Caetano escreve um artigo para a revista Verbo encantado, de Salvador, no qual desabafa: "Estou contente, até certo ponto, de vez que, como eu esperava a minha volta ao Brasil, a minha decisão de vir morar aqui no Brasil deixou à vontade pessoas que tinham necessidade de discutir e não apenas louvar o meu trabalho". E vai além: "Mas acontece que não só alguns saudavelmente se descontraíram para reiniciar um papo comigo, como também alguns outros se alvoroçaram doentes para me esquartejar e me lançar ao caldeirão".

São ainda dos textos dos anos 70 que emergem algumas referências a nomes como Milton Nascimento, Elis Regina, Jorge Mautner e Jorge Ben, hoje Jorge Ben Jor. Amigos e parceiros a quem Caetano dedica palavras de admiração e carinho. Sobre Milton, Caetano derrete-se: "Milton é nossa grande alegria". Para Elis, manda um recado: "O show business é um bichopapão muito bonito e você engole ele: essa é a mensagem que você passa pra todos os seus colegas de profissão". Em Jorge Mautner e Jorge Ben, Caetano destaca a liberdade criadora, um tanto anárquica.

Em certo momento, Caetano relembra os Doces Bárbaros - reunião com Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa em 1976 - e narra a prisão de Gil e do baterista Chiquinho Azevedo, em Florianópolis, detidos por porte de maconha, durante excursão do show. Caetano: "Nós não saímos para discutir as leis nem a moral. Nem a religião, nem a política, nem a estética. Nós não saímos para discutir. E não discutiremos".

A forte ligação entre Caetano e a irmã Maria Bethânia está refletida em dois textos, um feito para a apresentação do livro Maria Bethânia (Intersong), de Marisa Alvarez Lima, e outro para a revista Careta, do Rio de Janeiro, ambos de 1981. É com carinho e poesia que Caetano a descreve como "pequena e franzina, que deixa o espírito sair pela boca e queima a carne com a luz dos olhos".

Sem unidade, que de resto não se pode cobrar de uma reunião de textos de natureza tão distinta, o livro de Caetano tem o mérito de resgatar o calor do momento - e alguns deles foram realmente quentes. No lugar do filtro do retrospecto, que faz de Verdade tropical um grande ensaio memorialístico, o fragmento, a sacada, a resposta de bate-pronto. Ninguém precisa concordar com Caetano para admitir que, com ele por perto, o mundo não é chato.


segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

“Medos Privados em Lugares Públicos” de Alain Resnais


 Alain Resnais é dentre os cineastas que conheço da História do Cinema, aquele que melhor conjuga cerebralismo com emoção. Ambos os elementos estão presentes de forma intensa e altamente equilibrada em seus filmes, sem que uma vertente ofusque a outra. Isto tem resultado em filmes mais ou então menos difíceis, onde temas como tempo, memória, imaginação, vida, morte e solidão, etc. são tratados com grandeza rara.

Se tivermos que reduzir “Medos Privados em Lugares Públicos” a um único tema primordial é certamente a solidão do homem urbano contemporâneo. Resnais ao mesmo tempo em que se solidariza com seus personagens, tratando-os com ternura, os olha um tanto à distância. Comparo o filme a uma teia de aranha, onde insetos ficam presos isoladamente, mas todos se mexem juntos ao menor movimento da teia.

Charlotte (Sabine Azéma) e Thierry (André Dussolier) trabalham numa imobiliária. Thierry vive com sua irmã bem mais nova, Gaélle (Isabelle Carré), que está ávida por encontros amorosos que programa por sites e anúncios, sem sucesso. Dan (Lambert Wilson) é um ex-militar desempregado, expurgado da corporação, que não procura emprego, vive com Nicole (Laura Morante) e se embriaga no hotel onde trabalha o barman Lionel (Pierre Ardit), seu confidente. Thierry procura um apartamento que agrade Nicole, onde ela pretende morar com Dan. Charlotte tem um outro trabalho como enfermeira do pai de Lionel (voz em off de Claude Rich) do qual vemos apenas os pés, um velho bastante ranzinza e intolerante.Charlotte ao mesmo tempo em que se mostra bastante religiosa, participa de fantasias eróticas fetichistas que transmite por gravação em vídeo ao seu colega Thierry, pertubando-lhe o desejo e a percepção. Dan separa-se de Nicole, por um tempo, num acordo mútuo e acaba conhecendo Gaélle.

O filme é segmentado em várias seqüências que não negam a origem teatral da trama, sendo que as tênues separações são feitas por uma onipresente neve caindo, num efeito belíssimo que ressalta a frieza que se instala nos corações solitários.

Mesmo no inferno em que aqui queima os seres, com um Deus impassível, o filmenos mostra , há momentos tênues, onde um aconchego é possível e um fugaz paraíso se instala. É o misticismo de Resnais que dá as caras em meio a uma visão cética, docemente ácida da solidão (irremediável?) dos seres, num universo de relações voláteis.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Dois filmes e uma visão ética do mundo


O que um filme como “A Vida dos Outros” (Alemanha/2006),  de Florian Henckel von Donnersmarck tem a ver com “Central do Brasil”(1998) de Walter Salles? A relação de Salles com os road movies de Wim Wenders, cineasta de anos áureos do cinema alemão em que tínhamos Fassbinder, Schlöndorff, Kluge, Herzog e outros, é conhecida. Mas com o novato Florian o que há é uma identidade que não é formal e sim de visão ética do mundo. Ambos acreditam em transformações benignas do caráter humano mesmo em situações bastante adversas.

Em “Central do Brasil” acompanhamos a humanização da professora aposentada Dora que de trambiqueira que explorava analfabetos passa paulatinamente a ser, não sem oscilações, uma mãe substituta sensível de um garoto que corre risco de vida e quer juntar-se à família no Nordeste (um argumento que nos lembra, em parte, “Glória” (1980) de John Cassavetes). Em “A Vida dos Outros” somos testemunhas das transformações por que passa um rígido e profissional torturador, professor e espião da temida Stasi (polícia secreta da antiga República Democrática Alemã que contava com 100 mil membros oficiais e 200 mil informantes numa população de 17 milhões de pessoas) que invade e observa a vida de um escritor e sua namorada que é atriz.

No universo da Literatura o mais célebre personagem em que ocorre uma grande transformação espiritual é o Raskolnikoff de “Crime e Castigo” de Dostoiévski que de assassino convicto de uma velha usurária que desprezava, passa por intensa e dolorida busca, antes de qualquer coisa, por perdão a si mesmo. “A Vida dos Outros” não tem esta densidade filosófica e existencial. Mas dentro do tema das transmutações que pode ocorrer com as almas humanas tem pontos de contacto com este monumento literário.


Em “A Vida dos Outros” cada personagem responde questões com as quais nos defrontamos todos os dias: como lidar com poder e ideologia? Nós seguimos nossos princípios ou nossos sentimentos? Mais do que qualquer outra coisa, o filme é um drama humano sobre a habilidade dos seres humanos fazerem a coisa certa, não importa o quanto eles tenham percorrido uma trajetória errada.

Para mim a sequencia chave acontece quando um dos personagens fala, depois de tocar uma sonata de Beethoven ao piano:
“Você sabe o que Lênin disse sobre a “Apassionata”? Se eu ficar ouvindo isto eu não termino a revolução. Pode alguém que ouviu esta música, que a ouviu realmente, ser realmente uma má pessoa?”


 Com excelente aproveitamento da tela larga, é um thriller singular que num eixo central comunga com o estilo hitchcockiano e vai agregando camadas surpreendentes de sentidos, de 1984 até ultrapassar a glasnot de Gorbatchov e a queda do muro de Berlim em 1989, culminando num desfecho inesquecível e de grande densidade poética.

Garanto que vale a pena passar na sua locadora e alugar  um filme com eficiente estrutura de conto, sem pieguices, bastante urgente numa era em que estamos nos afogando num mar de cinismos e perdendo a fé no homem e no seu processo civilizatório. Este filme é " A Vida dos Outros"

El camino se hace ai anda.



"A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as  putas  e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete.  Ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace ai anda."

Caio Fernando Abreu
   

sábado, 18 de dezembro de 2010

Eu que aprenda a levitar – José Miguel Wisnik


Cair é efeito da gravidade, daquilo que é pesado. E se, em resposta a um corpo que cai, tentarmos voar – levitar? Em outras palavras, aproximar-se das possibilidades indicadas pela arte, que tantas vezes contrapõe uma certa leveza profunda a tudo aquilo que é pesado e superficial.

Palestra de José Miguel Wisnik no programa Café Filosófico CPFL gravada no dia 21 de outubro, em São Paulo.


Clique no link abaixo e viva essa emoção com José Miguel Wisnik:


Íntegra: Eu que aprenda a levitar – José Miguel Wisnik » cpfl cultura

Nossa Senhora do Silêncio - Fernando Pessoa



Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos.
É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio.
Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos.
Eu não sei quem tu és.
Que espécie de vida tens?
Que modo de ver é o modo como te vejo?
Como não te sonhar?
Como não te sonhar Senhora das Horas que passam?
Madona das águas estagnadas e das algas mortas.
Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa. Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono.
Livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte.
Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada, nem te ergo ante mim como santa.
Só tu, sol que não brilhas, alumias as cavernas, porque as cavernas são tuas filhas.
Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.
Sê a Noite Total e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação...
Seja eu as dobras do teu manto, as jóias da tua tiara, e o ouro outro dos anéis dos teus dedos.
Realizadora dos absurdos. Que o teu silêncio me embale, que o teu mero-ser me acaricie e me amacie e me conforte Anjo da Guarda dos abandonados.
Tu não és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contornam de mulher. Mas tu, na tua vaga essência, não és nada.
Não tens realidade, nem mesmo uma realidade só tua. Propriamente, não te vejo, nem mesmo te sinto. Ocupas o intervalo dos meus pensamentos. Por isso eu não te penso nem te sinto.
Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas noturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua.

Fernando Pessoa

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Mar...metade de minh'alma é feita de maresia...


        Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta - por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.
Sonoro e profundo

Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.
E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos

Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.
Ao longe por mim oiço chamando

A voz das coisas que eu sei amar.
 E de novo caminho para o mar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Boa tarde Lisboa







Quando atravesso - vinda do sul - o rio

E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas - 
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meadros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruemente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade - Lisboa.

                                                                    Sophia de Mello Breyner Andresen





segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Bom dia Lisboa

    
    Lisboa.
    
    O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
    Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
    Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. (…)
    O Tejo desce de Espanha
    E o Tejo entra no mar em Portugal.
    Toda a gente sabe disso.
    Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
    E para onde ele vai
    E donde ele vem.
    E por isso, porque pertence a menos gente,
    É mais livre e maior o rio de minha aldeia.
    Pelo Tejo vai-se ao Mundo.
    Para além do Tejo há a América
    E a fortuna daqueles que a encontram.
    Ninguém nunca pensou no que há para além
    Do rio da minha aldeia.
    O rio da minha aldeia não faz pensar em nada
    Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Lisboa e o Tejo

     

domingo, 12 de dezembro de 2010

Caio Fernando Abreu


"Aprendi que a vida, apesar de bruta, é meio mágica. Dá sempre pra tirar um coelho da cartola. E lá vou eu, nas minhas tentativas, às vezes meio cegas, às vezes meio burras, tentar acertar os passos. Sem me preocupar se a próxima etapa será o tombo ou o vôo. Eu sei que vou. Insisto na caminhada. O que não dá é pra ficar parado. Se amanhã o que eu sonhei não for bem aquilo, eu tiro um arco-íris da cartola. E refaço. Colo. Pinto e bordo. Porque a força de dentro é maior. Maior que todo mal que existe no mundo. Maior que todos os ventos contrários. É maior porque é do bem. E nisso, sim, acredito até o fim..."

Caio F. Abreu

Carmen por Ruy Castro







 Sempre gostei de ler biografias, de certa forma mergulhamos não apenas na vida do biografado, como também  viajamos à  uma época. 'Carmen', de Ruy Castro, é a biografia da brasileira mais famosa do século XX. Ano a ano, o autor acompanha a vida de Carmen - do nascimento da menina Maria do Carmo, numa aldeia em Portugal (e a vinda ao Rio de Janeiro, em 1909, com dez meses de idade), à consagração brasileira e internacional de Carmen Miranda e sua morte em Beverly Hills, aos 46 anos, vítima da carreira meteórica e dos muitos soníferos e estimulantes que massacraram seu organismo em pouco tempo. Mas 'Carmen' não é apenas uma biografia. Enquanto entrelaça a intimidade e a vida pública da maior estrela do Brasil, Ruy Castro nos leva a um passeio pelo Rio dos anos 20 e 30, e por Nova York e Hollywood dos anos 40 e 50 - cenários em que é especialista. Além disso, o autor resgata a história da música popular brasileira, da praia, do Carnaval, da juventude do passado, da Rádio Mayrink Veiga, do Cassino da Urca, da Broadway, dos gângsteres que dominavam os nightclubs americanos e dos bastidores dos estúdios de cinema - numa época em que para estrelas como Carmen, as noites não tinham fim.

 Carmen Miranda, além de ser esse acontecimento complexo que colocou o Brasil da primeira metade do outro século no mapa, é, para completar, uma eterna crise de identidade. Quando estava no Brasil, Carmen era acusada de ser “portuguesa” – pois, de fato, nasceu em Portugal. Quando estava nos Estados Unidos, era acusada por David Nasser d’O Cruzeiro – “no auge da canalhice”, segundo Ruy – de não saber mais falar português. Quando de seu primeiro retorno ao Brasil, desembarcou para um show no Cassino da Urca e não teve dúvida, cumprimentou o público: “Hello people”. Para tascar, logo em seguida, “South American Way”. Depois, para consertar ou rebater as críticas, gravou “Disseram que voltei americanizada”. Para os americanos, era mais uma “latina” (entre tantas) que, no seu circo étnico, associavam às mexicanas cantadoras de rumba. Para ela própria, não era nada disso: era a mãe frustrada, que realizou um aborto, teve outro espontâneo, casou-se mal e morreu em conseqüência desse arranjo. 












sábado, 11 de dezembro de 2010

Gal Costa


"Sabe uma faca me rasgando,
um mundo se acabando, num sei,
Gal Costa cantora, Gal Costa a mulher,
a mulher terrível, a mulher linda,
a noiva, a morta, a viúva , a maravilha:
é muito difícil falar essas coisas,
eu não sei, a Gal Costa sempre me trata
com choques elétricos, e eu chego pra ver
ela e me arrebento por ela e me desarrumo
por ela, não sei, é sempre surpreendente,
eu nunca sei o que vai acontecer, e cada vez
é como a vida (sic) tivesse se partindo,
se começando, se acabando...
Gal Costa é muito maravilhosa "
                                                                                                     Tom  Zé





Eleita, com justiça, pela revista Time, como detentora de uma das dez vozes femininas mais belas do mundo, a baiana Gal Costa criou uma escola de seguidoras no Brasil, além de ter virado referência obrigatória como influência para cantoras mais jovens. Possivelmente a melhor cantora a ter brotado de terras brasileiras, título que só encontra em Elis Regina rival à altura, a Gal dos anos 2000 se distanciou de seu apelo das décadas de 70, quando reinava nas dunas de Ipanema (“as dunas de Gal”) e mesmo da década de 80, quando deu uma guinada comercial que produziu canções radiofônicas como “Chuva de Prata” e “Um Dia de Domingo”.
Trata-se aqui, porém, da Gal da década de 60, uma jovem cantora de Salvador que despontou como musa do movimento tropicalista. No final do década de 60, ela gravou dois discos homônimos, recheado de canções de seus parceiros de movimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Um deles, o que abre com “Objeto Não Identificado” (Caetano Veloso), é impecável. Com timbre ideal, Gal desfila por repertório inalterável, que abriga jovens compositores da época. Da primeira à última faixa, uma seqüência de belas canções, com direito a uma intervenção em língua inglesa, “Lost In The Paradise”. Além da faixa de abertura, Caetano presenteia Gal com a bela “Saudosismo”, em homenagem ao ídolo que os aproximou, João Gilberto, com referências às canções que João consagrou, e também com o estrondoso sucesso “Baby”, em versão definitiva e não superada até hoje, incluída no disco “Tropicália ou Panis Et Circenses”, além da já clássica “Divino, Maravilhoso”, parceria sua com Gil.
Gil participa ainda da regional “Sebastiana”, que Gal cantaria no show Phono 73, e de “Namorinho de Portão”, de Tom Zé.
Há ainda canções da dupla Roberto & Erasmo (“Se Você Pensa” e "Vou Recomeçar") e de Jorge Ben, “Que Pena”, em dueto com Caetano Veloso.
Disco essencial para quem aprecia boa música.

Quem tem medo de Virginia Woolf


O diretor Mike Nichols fez um excelente trabalho ao levar o roteiro adaptado da peça de Edward Albee para as telonas. Elizabeth Taylor e Richard Burton dão vida a Martha e George, um casal de meia-idade que vivem num mundo de ironia e sarcasmo, e que aproveitam da visita de outro casal para colocar os “pingos nos is” na sua relação.

Em meio a álcool e ofensas, o casal começa a se despir (metaforicamente falando) de todos os pudores e ilusões, fazendo com que a gente perceba o quanto se esconde debaixo do tapete de casamentos por conveniência. Anos de hipocrisia vão aparecendo, até que a mais grave das ilusões é desvendada.

Ao assistirmos o filme, acompanhamos o desconforto dos convidados, obrigados de uma maneira ou de outra, a ouvir toda a lavação de roupa suja e até a participar da DR mais famosa do cinema. Até quem nunca conviveu com pessoas tão perturbadas psicologicamente vai sentir compaixão pelos dois. E ódio, às vezes.

Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? (Who’s Afraid of Virgínia Woolf?, 1966) conseguiu a façanha de ser indicado a TODAS as categorias do Oscar, sendo vitorioso em cinco delas. Liz Taylor ganhou seu segundo Oscar (o primeiro por Butterfield 8) e provou que não era só um rostinho (e corpinho) bonito na tela, aparecendo como uma mulher envelhecida e com muitos quilos a mais do que o público estava acostumado a ver.



Dizem que a própria relação do casal (casados na vida real na época) serviu de “laboratório” para dar tanta veracidade ao texto.Vale lembrar que o filme nada tem a ver com a escritora Virgínia Woolf, uma vez que a frase do título é um jogo de palavras com a canção “Quem tem medo do Lobo Mau” (“Who’s afraid of the bad Wolf”, no original), que serve de gancho para o convite ao casal para a visita à casa de George e Martha.


Pra quem gosta de cinema com um bom texto (quase que a totalidade do filme é fala sobre fala, às vezes deixando o espectador até confuso) e não tem medo de encarar os próprios fantasmas, muitas vezes refletidos na tela, Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? é imperdível!

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Elba Ramalho - Marco Zero






A paraibana Elba Ramalho é leoa do Norte. Com bravura, a cantriz impôs seu canto forte, torto e agreste ao Brasil em rota migratória que começou com sua vinda para o Rio de Janeiro (RJ) em 1974, passou pela participação na montagem original da Ópera do Malandro em 1978 e atingiu ponto de relevância em 1979 com a gravação e edição de seu primeiro álbum, Ave de Prata. É no lançamento deste disco de alma nordestina que Elba estabelece o marco zero de sua carreira fonográfica, que completou 30 anos em 2009. A festa comemorativa dessas três décadas foi feita com atraso em 12 de março de 2010, quando Elba subiu ao palco armado no Marco Zero para apresentar espetáculo produzido em menos de um mês. O Marco Zero é um local emblemático do Centro Histórico de Recife (PE), cidade que sempre acolheu muito bem os discos e os shows da cantora vizinha, além de ter lhe dado apoio institucional para viabilizar o registro dessa festa dos 30 anos que, a rigor,  já são 31. A gravação do show originou o CD e DVD Marco Zero - Ao Vivo, postos nas lojas pela gravadora Biscoito Fino entre outubro (o CD) e novembro (o DVD). Por não ser duplo, o CD dá ao ouvinte vaga ideia do que foi o show, apresentando 14 dos 24 números fora da ordem original do roteiro. Já o DVD é retrato fiel do resistente canto de Elba e, apesar de não ter tom exatamente retrospectivo, enfileira alguns sucessos que marcaram época na voz (hoje menos potente e mais trabalhada) da cantora ao longo desses 31 anos.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Em 09 de dezembro de 1977 Clarice nos deixava...




 Texto publicado no Jornal do Brasil:

" Falando em voltar para casa, sem saber da gravidade de sua doença, Clarice Lispector morreu ontem no Hospital do INPS, no Rio, e será sepultada amanhã no Cemitério Israelita. A família e os amigos pediram a todos que respeitassem um desejo antigo da escritora:
não fotografassem seu corpo morto.
10 de dezembro de 1977

Não ouve ainda quem contrariasse um antigo desejo da escritora: não ser fotografada depois de morta. De fotografias Clarice Lispector nunca gostou muito nem enquanto viveu, até ontem às 10h30 da manhã. Seu corpo, levado do Hospital do INPS da Lagoa, no Rio, onde permancera internada desde 16 de novembro no quarto de número 600, foi removido para o Cemitério Comunal Israelita, no bairro do Caju, e será sepultado amanhã às 11h. O velório de Clarice, que nasceu na Ucrânia e viveu no Brasil desde os dois meses de idade, só será realizado horas antes do enterro.
A escritora de 56 anos, não sabia da gravidade de sua doença, câncer generalizado, e muito menos que os médicos haviam perdido qualquer esperança de salvá-la após uma delicadíssima e frustrada intervenção cirúrgica no começo de novembro. Sua amiga e enfermeira particular Ciléia Borelli disse que ela passou em claro sua última noite, bastante agitada mas sempre lúcida: "Clarice conversava muito, mantinha-se sempre atenta, dando mostras de que
era uma pessoa dotada de um espírito de observação privilegiado. Além disso, ela nada sabia sobre sua enfermidade e demonstrava, em todas as conversas, seu otimismo e sua vontade de voltar logo para casa.
A morte encerrou uma convivência de vários anos, pois Ciléia se tornara a dama de companhia da escritora há vários anos, quando ela teve que ser internada com várias queimaduras pelo corpo, sofridas durante um incêndio que destruiu a casa onde morava. No hospital, poucos amigos, as irmãs Elisa (também escritora) e Tânia, o filho Paulo, alguns parentes. E os escritores Nélida Piñon e Autran Dourado, que seguiram para o hospital após a notícia da morte. Nélida explicava ao repórteres sobre a proibição das fotografias; Dourado permaneceu vários minutos em silêncio junto ao corpo de Clarice coberto por um lençol, na capela. Outra amiga, a bailarina Gilda Murra, lembrava a alegria que sentiu ao ler uma crônica de Clarice sobre sua dança.
Os parentes, que esperaram durante horas a remoção do corpo para o Cemitério Israelita na improvisada e suja capela do hospital, não quiseram fazer declarações à imprensa. Elisa e Tânia, as irmãs, não choraram, mas as expressões de sofrimento e cansaço mostravam que elas já haviam feito isso antes. Pouco antes da chegada da ambulância da Santa Casa que levaria o corpo de Clarice ao cemitério, Vilma, a esposa do ministro Nascimento e Silva, da Previdência Social, compareceu à capela. Com um vestido escuro, fumando muito, ela falava da honra de ter recebido uma das últimas dedicatórias de Clarice, em seu recente livro "A Hora da Estrela".
__ O livro me foi entregue por Nélida Piñon, explicava Vilma, e a dedicatória foi feita com letra tremida. Fiquei sabendo que ela o autografou no próprio leito onde estava. Nós éramos grandes amigas dela e sentimos muito sua morte. Também será uma grande perda para a literatura brasileira.
A escritora, que submetera-se à operação na Clínica São Sebastião, acabou sendo removida para o Hospital do INPS graças ao interesse do ministro Nascimento e Silva. A ambulância esperada chegou às 15h, trazendo uma urna simples de madeira, onde foi colocado o corpo. Antes da saída, novamente o mesmo pedido de que fosse respeitado o desejo de Clarice e ninguém fizesse fotos. Ninguém fez.
A viagem para o Cemitério Israelita durou 20 minutos. Apenas a ambulância entrou, ficando parents e amigos do lado de fora. Os grandes e pesados portões de ferro foram imediatamente fehcados, enqunto informava-se que o corpo estava sendo colocado em câmara mortuária onde permanecerá até amanhã, quando começarem as cerimônias judaicas. "Clarice não era devotada à religião, mas sua família resolveu dar-lhe um enterro conforme os rituais judáicos. Ela era um ser humano excepcional, uma pessoa profundamente delicada e discreta, que jamais dissociou sua obra da vida. Ela como ninguém conseguiu dominar a língua brasileira e, embora ucraniana de nascimento, acabou sendo mais brasileira do que muitos que aqui nasceram", disse Nélida, no lado de fora do cemitério. Disse também que Clarice não gostava muito de falar sobre sua obra nem dos projetos literários para o futuro, "embora fosse uma escritora com bastante vitalidade e vontade de trabalhar em seus livros".
Clarice Lispector era desquitada do diplomata Maury Gurgel Valente, atual embaixador brasileiro na ALALO, no Uruguai. O casal teve dois filhos: Paulo, que reside no Rio e assistiu à morte da mãe, e Pedro, o mais velho, que vive com o pai."





  "Clarice,veio de um mistério, partiu para outro.Ficamos sem saber a essência do mistério.Ou o mistério não era essencial,era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,onde a palavra parece encontrarsua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice viveu por nós em forma de história em forma de sonho de história em forma de sonho de sonho de história(no meio havia uma barata ou um anjo?) não sabemos repetir nem inventar.São coisas, são jóias particulares de Clarice que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,carteira de identidade, retrato.De Chirico a pintou? Pois sim.O mais puro retrato de Clarice só se pode encontrá-lo atrás da nuvem que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,tentativas de Clarice sair de Clarice para ser igual a nós todo sem cortesia, cuidados, providências.

Clarice não saiu, mesmo sorrindo.Dentro dela o que havia de salões, escadarias,tetos fosforescentes, longas estepes,zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,formava um país, o país onde Clarice vivia, só e ardente, construindo fábulas.Não podíamos reter Clarice em nosso chão salpicado de compromissos.

Os papéis,os cumprimentos falavam em agora,edições, possíveis coquetéis à beira do abismo.Levitando acima do abismo Clarice riscava um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.Fascinava-nos, apenas.

Deixamos para compreendê-la mais tarde.Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice."


Carlos Drummond de Andrade, 09 de dezembro de 1977.